Prólogo
1991. Um trabalhador rural recebe notícias terríveis e decide o que deve fazer a respeito.
Algumas histórias começam com uma escolha.
Esta começa com uma perda.
Quando escrevi este capítulo, precisei parar algumas vezes. Não pelas palavras - mas pelo que elas tocavam em mim.
Porque perder alguém é sempre uma dor. Mas, às vezes, o que vem depois é pior: a tentativa de consertar tudo sem ajuda. De fazer do amor uma promessa. De carregar nos ombros aquilo que só a graça sustenta.
Não digo mais nada. O resto, a história conta melhor do que eu.
— Meus sentimentos, senhor. Agora preciso que se afaste.
A voz do médico era monótona e formal, perfeitamente alinhada com os corredores frios e organizados do Pronto Socorro quase vazio.
Eli não ofereceu resistência e, assim, tocou os cabelos daquela que fora sua esposa uma última vez. Do lado oposto uma enfermeira o chamava para ir com ela ao berçário buscar sua pequena Fernanda.
— Apesar de o soro antiofídico não ter funcionado como esperado, posso dizer que a amputação foi um sucesso —, dizia, com o mesmo tom imparcial do médico, enquanto entregava ao pai o pequeno embrulho branco com sua filha de pouco mais de um ano em sono profundo. Ao envolvê-la nos braços era possível sentir o curativo rígido no lugar de um dos pezinhos. Eli sabia que as chances de possuírem o soro seriam baixas - afinal, aquele era um protótipo de hospital numa cidadezinha no fim do mundo - mas era tudo o que tinham naquele momento.
— Aqui está o procedimento para a troca do curativo, aqui estão as receitas e o nome do leite. Espere aqui para levar umas latas. — Na pequena televisão de tubo no canto da recepção, um especialista explicava em poucas palavras o significado das eleições presidenciais diretas que ocorreriam naquele ano de 1989, além de especulações acerca do cruzado novo e o que isso traria para a economia do país.
Eli olhou para sua filha e se perguntou se ela sentia o caos ao qual ela própria acabava de sobreviver.
Tudo por culpa dele. O rosto queimava ao imaginar sua Ingrid arrancando com as próprias mãos a cobra do encalço da filha, incapaz de pedir ajuda ao marido, que tocava gado do outro lado da cidade. Ele precisava de dinheiro para o barracão, as sementes, as estufas, ou era o que repetia para si. Mas Ingrid não tinha como saber lidar com aquela cascavel. Ela não deveria precisar. Ele a arrastou para aquele fim de mundo, ele deveria proteger sua família, impedir que qualquer mal as atingisse, mas agora era tarde demais para Ingrid. Havia apenas uma dose de soro, que a mulher insistiu que fosse dada à pequena, poucos minutos depois de ser informada da falta e perder a consciência.
— Cuide dela, homem — ela o fez prometer. E, como num adeus, a voz falhada lutou para expressar o que os olhos grandes diziam tão bem:
— Eu não me arrependo de nada.
A empolgação com as possibilidades que a terra lhes dava, em contraste com a claustrofobia que enfrentavam na metalurgia, fora o combustível que os fazia tolerar esses primeiros anos de improvisos na pequena propriedade recém adquirida. A esposa não fazia conta de casa de cidade, não reclamava das paredes de taipa, apesar de ter crescido na metrópole.
Não tardou muito e logo trataram de arrumar criança, como diziam por ali. Gravidez típica, um parto tranquilo, a pequena Fernanda chegava como um anúncio divino de novos tempos para o jovem casal. Finalmente, pensava o jovem pai, construiriam um legado de respeito, longe da miséria e do tumulto da periferia urbana, onde nada mais poderia impedir o potencial que Eli sentia pulsar dentro de si.
Ou será que entendera errado? O que Deus queria com isso tudo? E como o homem saberia? Naquele momento Deus era uma ideia vaga e complexa, algo entre uma chance de esperança distante e a certeza do julgamento eterno, mas, não, Deus não era o culpado por aquilo.
Foram seus próprios sonhos de grandeza que assassinaram sua esposa e amputaram sua filha. A partir de agora, então, ele engoliria seu orgulho e mania de grandeza e faria do que restou da sua família o seu maior sonho. Dia e noite, seu maior objetivo então se tornaria a satisfação daquela pequena princesa em seus braços. Sim, e não pouparia esforços na construção de tal reino encantado. Todos finalmente veriam, através de Fernanda, o grande homem que Eli Arruda poderia ser.
A seguir: Dias atuais. Eli, um sexagenário, começa seu dia no sítio normalmente, até que algo anormal chama a atenção dos animais.
Começar já assim… uau! Um soco bem dado no estômago e um deleite na escrita, tudo ao mesmo tempo.
A gente começa a ler sempre esperando que os eventos dolorosos sejam mentira né? Esse pensamento do Eli é tão comum pra nós homens... Ansioso pra ler o restante