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Melinda e Gabriel se unem em meio a planilhas, farpas e perdões.
I
E havia muitas coisas para explicar, e para aprender. O relógio não era páreo para aquele trio igualmente empenhado na recuperação do sítio. O sol ditava o ritmo apenas fora da casa, mas dentro de casa as canetas não paravam de dançar.
A tela do computador, sempre acesa, quando não estava transformando papéis em planilhas, servia de sala de aula para o velho que, pela primeira vez na vida, encontrara um ambiente com boa vontade e paciência suficientes para suas dúvidas.
Do clique ao raciocínio, da tecla ao cursor piscante, a magia da modernidade era desvendada diante dos olhos. As planilhas ganharam, para ele, status de uma das melhores invenções da modernidade, os gráficos eram instrumentos encantadores que quase podiam prever o futuro. Os nomes, datas, números, quantidades, tudo finalmente parecia tão mais fácil de acompanhar ali.
— E se eu me perder no meio de tanta coisa? Como eu vou achar a análise de maio do ano passado, por exemplo?
— Aí você aperta esses dois juntinhos, tá vendo? Eu deixo anotado pro senhor. Aí escreve “maio” na caixinha que abriu ali. Pronto.
Aos poucos o grande bicho de metal e luz ia perdendo uma a uma as suas sete cabeças, graças ao esforço hercúleo de todos.
E o grupo seguia para atacar seu próximo oponente, que, no caso, era um bovino jersey.
— Mas ele é o meu reprodutor há anos!
— E há anos o senhor tira pouco leite. Vamos melhorar essa genética.
— Não vai me dizer que…
— Isso mesmo. Inseminação artificial. Já conversei com o fornecedor, mas a gente tem que treinar primeiro — disse a veterinária com uma luva que ia até os ombros.
Gabriel quase caiu no chão de tanto rir:
— Treinar! Eu tô é fora desse treinamento, boa sorte, seu Eli!
— A inseminação permite que a gente escolha a raça e o sexo da cria, e isso sem ter que arcar com os custos de manter um boi. A minha recomendação é a raça holandesa, que tende a produzir um volume muito maior que a jersey. E nada de preciosismo, que o senhor precisa é de dinheiro, e o povo aqui paga por volume e não pela cor do leite.
Eli se resignou ao treinamento.
E, de noite, registrando tudo no computador.
— Essas daqui já dá pra pagar, não dá?
— Isso, olha o saldo na planilha. Agora é só fazer a transferência pelo celular, nada de perder tempo na lotérica.
— Menino, você tá de parabéns.
Nada de perder tempo e nem dinheiro. Os bezerros, que estavam ganhando peso às custas do leite, já eram vendidos imediatamente. E mais contas iam sendo pagas. As novas crias, matematicamente e geneticamente equilibradas para o máximo rendimento, chegariam em breve.
Os livros e vídeos e artigos científicos sobre genética leiteira eram devorados enquanto as vacas devoravam a ração na quantidade certa. E antes de se acostumarem com as “máquinas de tirar leite”, como Eli chamava as ordenhadeiras, o viveiro de mudas recém construído começava a receber os primeiros brotos de pasto tifton nascidos no próprio sítio.
Os dias se transformavam em semanas, e as semanas, em meses. Os brotos se tornam mudas que, com muito trabalho, transformam-se em piquetes inteiros plantados um a um pelo trio inseparável. Gabriel ficava cada vez mais tempo na propriedade, mal almoçava e quase nunca parava na própria casa, equilibrando o serviço no sítio com seu emprego de fato na associação.
O manejo, antes simplório e desregrado, seguia agora a pontualidade de que os animais e os humanos tanto precisam. A cana de inverno crescia e depois era dobrada para os dias mais secos. A ordenha passou de uma para duas vezes ao dia, com doze horas religiosamente contadas entre elas.
A ureia agora era oferecida por peso, e não por volume, assim como a ração.
As árvores perdiam suas folhas, a estação seca chegava e partia, as novilhas cresciam e nasciam os últimos jerseys, Malhada e Mocinha liderando as novas gerações atrás delas.
Como resultado a produção leiteira por cabeça mais que dobrava, assim como o rebanho. O tanque, afinal, não parecia mais tão grande quanto há alguns poucos meses. A sensação geral, entretanto, era de que a água passava a ser menos do que precisavam.
O bruto Eli aos poucos se transformava num diamante lapidado, refletindo no campo cada vez mais a sofisticação invisível da sua alma. A menina Melinda florescia suas pétalas cor de anil, sua melancolia adquirindo um tom quente de determinação e confiança. Seu Eli e Gabriel viam com alegria a aproximação entre Melinda e Dona Josefina, que a acolhera de forma tão simpática na sua visita despretenciosa à pequena igreja. O que eles não sabiam era das visitas que a própria moça solicitava à irmã durante a semana. A cada ferida que era tocada, a cada passo importante que davam na fé, era como se uma represa de sentimentos reprimidos se rompesse por através dos olhos molhados da moça. E, aos poucos, ela mesma sentia dar lugar a um rio muito mais caudaloso que começava a fluir dentro de si.
E, pela primeira vez, Melinda pôde render-se sem reservas não ao Deus de seus pais, mas ao seu próprio Deus e senhor.
Foi apenas na chegada de outubro, com a estação chuvosa se afirmando de fato, que a suspeita da água se confirmou. Embora houvesse uma mina dentro dos limites da propriedade, e ainda que Eli nunca tenha sido mesquinho a respeito disso, a água com certeza não era o bastante. O crescimento do rebanho apenas agravava uma situação que já se mostrava sutilmente desde o início. A pouca vazão nas bicas, a bomba do reservatório quase sempre ligada e o gosto de terra na água da torneira exigiam uma atitude.
II
O velho chegava na mina como se fosse uma das coisas mais comuns. Para Melinda, contudo, o lugar nada tinha de banal.
O vento gelado que subia, tal qual um sussurro da mata, era um convite ao emaranhado verde que se aproximava. A pastagem aberta dava lugar aos arbustos do barranco que descia íngreme, que por sua vez cedia seu posto às pedras pintadas de musgo e à vegetação rasteira coberta de árvores frondosas de que a moça só tinha ouvido falar.
A única referência a plantas em meio a fontes de água que habitava sua mente era a paisagem inglesa retratada em um de seus livros de criança. Entretanto, enquanto aquele era um lugar moroso, que convidava a um sono eterno onde nada nunca acontecia, esse era um ambiente cheio de vida. Por todo lado ouvia-se cantos desconhecidos para ela: os brados enérgicos do tucanuçu disputavam o palco com os gritos do pica-pau, enquanto o canário-da-terra ignorava ambos e se banhava numa poça perto da margem do riacho.
O cheiro úmido que emanava do local era estimulante e, ao mesmo tempo, um refrigério naquele tempo quente. À semelhança de Eli, Melinda também retirou as botinas e levantou as calças até logo abaixo dos joelhos.
— Aqui, é melhor você agarrar isso — avisou o velho, entregando-lhe um pedaço grande de pau que lhe serviu de cajado.
Atravessaram atentos o bambuzal, as pedras, descendo o barranco, abrindo caminho no mato rasteiro, onde apenas podiam ouvir ainda o barulho da água corrente, que ia ficando cada vez mais forte à medida que se aproximavam. Melinda se agarrava a tudo que podia: cajado, troncos, galhos, com uma dificuldade esperada em se manter em pé. O velho descia com uma destreza de menino, leve como folha, e logo chamava lá de baixo:
— É aqui, chegamos!
Exausta e transpirando, Melinda finalmente enxergou o curso d’água.
A visão daquela pequena nascente lhe ficaria para sempre impressa na memória e no coração. Por entre pedras lustrosas era possível ver uma pequena turbulência que indicava o local exato da fonte. Tal turbulência, contudo, não era suficiente para agitar o fundo do riacho para que houvesse turbidez: era um veio cristalino que se abria diante deles, rasgando a mata a perder de vista, desbravando seu caminho até juntar-se ao Ribeiro Alvo, que dava o nome ao distrito.
O velho, no entanto, ignorou o profundo estado de contemplação da moça e continuou seu caminho até um pouco mais adiante no ribeiro, onde uma roda d’água aproveitava um desnível para alimentar a bomba responsável pela captação. Se houvesse algum problema, haveria de estar ali.
A moça o seguiu e observou uma velha roda d’água de madeira de um vermelho vivo descascado, que alimentava uma bomba de grande vazão. Pelo que se lembrava dos livros, haveria uma tubulação que levaria o fluxo necessário a algum tipo de reservatório em local alto na propriedade. Se houvesse algum tipo de problema num curso caudaloso como esse, ele estaria em algum vazamento pelo caminho ou no próprio reservatório, já que a bomba e a roda em si pareciam funcionar bem.
— Não, não é vazamento.
— E como o senhor tem certeza?
— A gente veio acompanhando os canos, eu não vi nenhum. Você viu alguma coisa?
— Não, não vi. — E, de fato, Melinda não tinha visto nem cano, nem nada, mas não admitiria isso ainda. — Será que não é a bóia do reservatório, seu Eli?
— Ela tá boa, eu subi ontem ali. Ah! Pode ser isso.
Eli apontou para uma bifurcação na saída da bomba.
— Eu esqueci, mas compadre Murilo puxa água daqui também.
Compadre Murilo era o vizinho de trás, cuja propriedade já fora muito abundante em recursos hídricos mas, que agora era rica apenas em soja e em dinheiro.
— E quem é? Esse é o tubo dele? Mas é maior que o seu!
— É mesmo. Quando ele pediu, mas faz tempo, era só uma mangueira fina, agora tá esse cano grosso. Deve de ser isso.
— Mas então vamos falar com ele! A mina está na sua propriedade!
— Olha, menina, não é tão simples. A água não tem dono, eu não posso proibir o compadre de puxar.
— Entendo. Mas sempre foi assim? Então por que a água diminuiu?
— Não, não faz cinco anos ele pediu pra pôr uma mangueira aqui. O compadre até tinha água, mas ele teve que raspar a mata em volta por conta da soja, sabe, se não ia dar muito pouco de lavoura.
— E a mina dele secou, adivinhei?
— Secou.
— E agora ele pega água do nosso sítio e a gente fica sem? O senhor acha certo isso?
Eli esboçou um sorriso, enquanto ouvia agachado na margem as palavras “nosso sítio”, mas concentrou-se no assunto:
— Era pouca água, menina. A gente há de resolver isso, sim. Mas, antes, tem uma coisa que eu quero fazer.
E, de repente, Melinda sentiu um espirro de água congelante no rosto. É claro que foi obrigada a retribuir o favor. A vida transbordava em torno daquela nascente e, por um momento, ela imaginou como seria ser uma árvore plantada junto a correntes de águas. Será que elas sorriam por dentro, quando Deus brincava de espirrar água nas suas folhas, como um pai brincando com suas filhas?
A seguir: Fernanda e Raul fazem uma visita à propriedade.