Capítulo 8 - Multidão de conselhos
Melinda e Gabriel se unem em meio a planilhas, farpas e perdões.
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Eli e Melinda se conhecem melhor.
I
Os dias passavam voando na pequena propriedade. A cabeça de Eli era um caldeirão de ideias frescas, e Melinda se esforçava para acompanhar e fazer dar certo. Por todo canto se via novas engenhocas de madeira, novos cochos de barris azuis, pneus, e até concreto cinza. A moça também dava suas ideias, às quais tinha que empenhar força extra na forma de embasamento, informação e persuasão, para que o velho pudesse acompanhar e fazer dar certo.
A grande mesa era só papéis e mais papéis, com esboços, cálculos, desenhos, recibos, notas, laudos, análises. O velho ainda era um bicho analógico e mantinha décadas de planilhas em livros-caixa empilhados num baú empoeirado.
— Olha, acho que o Gabriel pode ajudar com essa parte da contabilidade. Eu o vi trabalhando nisso outro dia, parece que ele é bom. — Apontou Melinda, enquanto amassava uma folha de caderno rabiscada.
— Então o Gabriel é bom?
— Só digo que é melhor que eu. Odeio números — acrescentou a moça, evitando contato visual. — E pelo que estou vendo aqui, o senhor precisa muito de ajuda com isso. Olha, tem conta até de 2005, isso já foi quitado?
— Amanhã é domingo, eu falo com ele na igreja. Ou você pode falar também, você já tá a par de tudo, mesmo.
— Ah, mas eu não vou em igreja.
— Ah, não vai? Bom, se quiser ir comigo um dia, é só falar.
— Fica tranquilo, que eu não vou.
A contabilidade era de fato assombrosa, tanto para Melinda quanto para Eli, que há anos evitava o exame cuidadoso do assunto. Acontece que a moça estava numa situação complicadíssima: já estavam no final da sexta-feira, e ela passaria dois longos dias sem contato com o único que poderia resolver o seu problema (que, no caso, era a contabilidade do sítio, nada além disso).
Como ela poderia comunicar a necessidade da presença do rapaz em cima da hora, no carro indo para o sítio? Isso soaria como desespero, com certeza. Ela precisaria encontrar-se com ele de forma casual, despretensiosa, sim, e ali em Ribeiro Alvo ninguém acharia isso estranho.
Passaram-se a tarde e a manhã, o primeiro e o segundo dia, domingo do Senhor.
— Mel, que bom que você veio, menina! Mas você não disse…
— Esquece o que eu disse.
O velho surpreendeu-se com a pontualidade da moça, “mas eu nem falei que horas começava, e nem onde era”, pensou. De qualquer forma, lá estava sua aprendiz, batendo palmas nas músicas mais agitadas, abaixando a cabeça nas músicas mais lentas.
— Olha, o Gabriel chegou ali, — apontava o velho, ao que pareceu incomodar a menina. “Ela deve de querer prestar atenção no pastor”, concluiu.
A pregação do dia era um convite à coragem, com base na história do jovem Samuel. O menino recebera a visão de que o sacerdócio seria retirado de seu mestre e, seus filhos, mortos. O líder religioso era responsabilizado pela imoralidade de seus filhos, devido à sua complacência excessiva. O pastor parecia especialmente emocionado nesse ponto.
Mas quem não seria complacente nos dias de hoje? Era só olhar em volta e ver quantos pais e mães cansados e sobrecarregados entregavam seus filhos aos seus próprios desejos para ter um pouco de paz, e para não ter de lidar mais uma vez com a frustração em seus olhinhos de crianças. Ainda que com as devidas ressalvas, era difícil imaginá-los como corresponsáveis pelos fracassos de toda uma geração, logo eles, que trabalhavam tanto. E Samuel tinha que revelar isso ao velho sacerdote.
Quem gostaria de dar notícias como essas?
No final do culto os dois jovens conversavam sério e baixinho sobre a propriedade leiteira.
Bebericando do copinho de café, Eli assistia de longe. O velho sabia que o problema há tanto tempo adiado teria uma resolução longa e trabalhosa, mas não podia mais evitá-la. Melinda fazia gestos duros com a mão e olhava de quando em quando para a direção do velho, enquanto Gabriel enrubescia e assentia com a cabeça. Mas algo tomou a atenção de Eli.
— A paz do senhor, compadre Eli! Como é que tá a coluna?
Era compadre Jorge, que só aparecia em dia de festa, ou quando tinha assuntos a tratar.
— A paz, compadre! A coluna tá aqui ainda, pela graça de Deus! Eu tô com uma ajudante agora também.
— Tô vendo, tá judiando da moça, compadre! Não sei pra que tanto capricho naquela desgraça de cerca.
— Por causa de quê, compadre?
— Arre, compadre, o senhor tem aquele pastão todo ali sem gado pra comer, que que o compadre acha de deixar meus bezerros ali pra dar uma baixadinha nele pro senhor?
— Eu tenho gado, sim, compadre.
— Aquelas vaquinhas mirradas? Por favor. — Ria compadre Jorge. — É só de quando em quando, o senhor me ajuda e eu te ajudo.
— Sabe o que é, compadre? Andei pensando no que o senhor disse, lá naquele dia que eu passei mal da coluna — Eli não disse, mas ambos se lembraram da carona recusada. — E eu aprendi uma coisa.
— E o que é, compadre?
— Que eu não acredito que isso tá certo. E eu não sou obrigado a desfazer das minhas crença pra ajudar os outros.
II
— Mas que raio de televisão é essa? — Eli se alarmou, com o novo equipamento do sítio numa mesinha menor da cozinha.
— É um computador, seu Eli — respondeu Gabriel, que acabava de instalar a CPU e os periféricos de tamanho grande enquanto o velho estava na roça com Mel. — Agora o senhor vai anotar tudo aqui. Mas fica tranquilo, eu ainda vou arrumar tudo pro senhor, o senhor vai ver que não é nada demais.
— Veja que eu não gosto nada disso — disse, antes de entrar no banheiro externo para trocar de roupas. Voltou com calça e camisa limpos e um par de chinelos de dedo.
— Fique tranquilo, seu Eli, o Gabriel já ajudou outros produtores nessa parte e, pelos arquivos deles que eu pude ler, só posso dizer que o Gabriel é de confiança. — Melinda procurava os utensílios para servir a mesa com comida requentada do jantar anterior.
O rapaz ruborizou-se, com o olhar fixo na tela e os dedos ágeis no teclado.
— Não é isso, menina. Eu não gosto dessas coisas modernas de computador. É um negócio caro e delicado, e eu sou econômico e bruto.
— O senhor pode até ser — começou Melinda, que se reteve a tempo, enquanto folheava a pasta de correspondências ao lado dos pratos.
— E tem mais. Depois que o caboclo começa a mexer com essas coisas, não para mais. Parece que fica bobo.
— É só quando não tem sabedoria, seu Eli, principalmente na cidade… — começou Gabriel.
— Na cidade? — Melinda alarmou-se.
“Que não tem muito trabalho braçal, ou formas diferentes de distração”, iria completar o rapaz, mas algo no rosto da moça o fez mudar de ideia:
— É, na cidade, com todas aquelas modinhas bobas.
Mel pousou o garfo na mesa.
— Quer saber, você está certíssimo, Gabriel. Tem muito homem feito na internet que só quer saber de videogame e desenho japonês. É bom tomar cuidado, mesmo.
Gabriel se servia de arroz, feijão e farofa, com os quais pretendia fazer uma mistura homogênea, e só depois se servir da carne com legumes.
— Ah, verdade, outro dia vi uma moça com uma camiseta de desenho japonês, mas foi aqui em Ribeiro Alvo mesmo, no centrinho — reparou Eli, entre uma garfada e outra.
— Seu Eli, aí está um homem com sabedoria. A internet pode fazer mal tanto a homens quanto a mulheres — Apontava o rapaz com eloquência.
— Nisso eu concordo plenamente — acrescentou a moça. — Mas geralmente só as mais bobinhas que caem nessa. — Mas queria ter dito “as mais novinhas”, coisa de que se arrependeu instantaneamente:
— Principalmente aquelas que se acham empoderadas — satirizava o moço, enquanto servia limonada a todos — que adoram se ofender por qualquer gentileza que um homem faça a elas.
— Gentileza?
— Sim, tipo várias caronas, sem um único agradecimento.
— Ou uma patada quando elas só estão tentando ser legais.
— Ou levar o currículo dela para o chefe, escolhendo pessoalmente, insistindo pra ela vir.
Mel conteve um suspiro de surpresa.
— Mas isso não muda nada.
Eli já não acompanhava mais o assunto. “Devo ter perdido alguma coisa”, pensava. Entretanto, algo naquela conversa parecia incomodar demais o rapaz, cujo rosto em tons de rosa não escondia muito bem seus sentimentos.
— Tá tudo bem, menino?
— Acontece que as mulheres se acham o centro de tudo, seu Eli. Um homem não pode estar com outras coisas na cabeça, outros problemas sérios, e falar alguma coisa atravessada, que elas já acham que o problema é elas.
— Ah, isso acontece mesmo — intrometeu-se o velho. — A Fernanda era bem desse jeito. Acho que eu não sabia falar com ela direito. Eu vou levar esse resto de salada pros frangos no terreiro e já volto, pra já.
Isso não pareceu interromper a conversa.
— Mas isso é tão simples de resolver — disse a moça. — É só pedir perdão. A coisa mais fácil do mundo, mas quem disse que o orgulho masculino deixa?
— Perdão, tá bom?! — desabou Gabriel, que havia perdido o apetite na metade do segundo prato. — Não era com você, é sério.
— Devia ter dito antes — arremeteu, sem se dar por vencida.
— E tudo que eu tenho feito até agora pra você, te trazendo aqui todo dia, eu até tirei um computador de Nárnia pra deixar aqui. Ou você acha que é fácil achar um computador grande numa segunda de manhã, sendo que eu fui avisado só no domingo à noite?
Mas a réplica não foi possível. O velho vinha chegando pela porta da sala.
— Que silêncio nessa casa, quem morreu? — brincou Eli.
Ao mesmo tempo os dois jovens, submissos, se desculpavam:
— Não é nada, seu Eli.
— Nada, estava comendo ainda.
— Bom, então eu vou lavar a louça e…
— Não, deixa que eu lavo — responderam, em uníssono.
Eli coçou os ouvidos. Tinha alguma coisa estranha ali.
Depois que Melinda finalmente ganhou a batalha pelo direito de lavar a louça, para provar que não era do tipo empoderada, e muito menos do tipo preguiçosa, Gabriel voltou às suas anotações no computador enquanto Eli passava um café forte para os três. Parecia que a paz havia voltado a reinar no sítio, com um silêncio do tipo bom naquele início de tarde.
Entretanto, depois de ir e voltar em vários livros-caixa, conferir, procurar, fechar e abrir os cadernos, Gabriel não se conteve:
— Seu Eli, o senhor não mistura os gastos da Fernanda com os do sítio, não?
— Misturar? Como assim?
— Isso, as coisas dela, quem é que compra? Ela tem algum tipo de salário, ou…
— Não, ela tem um cartão só dela, mas eu sempre paguei certinho.
— Não, seu Eli!
Melinda e Gabriel se entreolharam.
— Seu Eli, vem cá que eu quero te explicar umas coisas.
III
O telefone tocou cinco vezes antes da voz robotizada do pastor se fazer ouvir do outro lado:
— No que posso ser útil, irmão?
— Eu sei que o senhor mandou eu ouvir a voz de Deus na bíblia, nas coisas, mas tem um negócio que eu não estou conseguindo entender, não…
Então o velho explicou o dilema mais recente que o fazia oscilar entre os gastos exorbitantes de Fernanda e a necessidade urgente do sítio por mais investimentos.
O pastor, que esperava uma oportunidade daquelas há vários anos e sete ciclos de jejum, não hesitou nem mais um momento:
— Irmão Eli, mas que bênção que o compadre ligou. Mas é assim mesmo, na multidão de conselhos mora a sabedoria. O compadre sabia que nem Moisés descobriu tudo sozinho e precisou do sogro pra arrumar a bagunça do povo? Pois bem, agora faça tudo exatamente como vou lhe dizer.
Em poucos dias o ilustre casal viu-se obrigado a sair com muito custo do sítio, entregar o cartão de crédito e tentar trabalhar por conta própria. A contrapartida foi um emprego temporário muito tranquilo: “dinheiro fácil” foram as palavras que mais os atraíram. Por um período de poucos meses, evidentemente, deveriam atender e residir na casa e os cães de um outro casal, muito rico. Eles haviam perdido a filha num parto complicado, e foram convencidos por seu líder espiritual a tirarem um período sabático junto aos parentes da moça no exterior. A casa em si já era bem guarnecida de empregados, e a lavoura de café andava sozinha, mas a pobre esposa tinha apego aos cães, ao que Fernanda e Raul serviram muito bem.
Para garantir a gratidão e o bom serviço deles, foi-lhes dada uma remuneração gorda e acesso livre aos mantimentos durante todo o período, além do bônus inicial de um smartphone novo para cada um. Não preciso dizer que foi o início de uma bela relação ganha-ganha tanto para o casal enlutado, quanto para o casal empregado e, principalmente, o sítio.
— Pastor, e não é que o negócio ficou bom demais?!
— É o que eu te falo compadre. E se quiser aprender mais, é só me chamar.
A seguir: A água começa a ser um recurso limitado no sítio de seu Eli.