Da autora
Enquanto você lê esse capítulo, muito provavelmente estou a caminho do lugar que me inspirou toda essa história. Se você também conhece esse lugar maravilhoso, há de concordar comigo que aqui a gente encontra inspiração, fé e um propósito maior.
Que essa história te lembre que, assim como Eli, somos chamados a confiar e seguir adiante, mesmo sem ver o caminho completo.
Boa leitura!
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Anteriormente:
Eli aceita a proposta de Gabriel, e agora deve virar o sítio de cabeça pra baixo para honrar o acordo.
I
A única coisa a se lamentar em todo aquele acordo com Gabriel era, de fato, a tal da veterinária. “Menininha petulante, abusada, quem ela pensa que é pra chegar aqui, no meu sítio, e ficar botando defeito em tudo?”, resmungava Eli com os pés para cima junto ao fogo, depois um dia daqueles.
Os primeiros minutos do encontro já deram o tom da primeira, segunda e terceira impressão. Eli havia colocado a sua melhor roupa de domingo, preparou um pão e deixou leite fervido na geladeira, além de manteiga caseira num potinho com tampa.
Gabriel nem fez o favor de descer do carro ao deixar a moça. Fez as apresentações ali mesmo e disse que estava uma correria na associação. Então desceu uma pirralha que não tinha nem metade da idade de Eli, com botinas cheirando a novo, jeans escuro e camisa branquinha igual algodão de paineira. Eli jamais admitiria que o branco lhe caía bem e reforçava o tom moreno forte da sua pele, e nunca, sob hipótese alguma, jamais lhe diria que Ingrid adoraria ter uma filha como ela, veterinária. Sem condições.
Ainda mais depois de a moça tão gentilmente recusar qualquer coisa que “contivesse proteína animal”, por conta de alguma suposta alergia. A visita ao campo, de onde Eli tão meticulosamente removera as ervas daninhas, tampouco teve o efeito desejado: o pasto recebeu os adjetivos “desleixado”, “precário” e, o pior de todos, “baixo”. A cana? Insuficiente. A ração? Matando o gado de fome. A sala de ordenha fez a moça rir, e o piquete das novilhas, segundo a especialista, era pior do que nada. O que ela estava querendo?
Aquela mocinha magrela, raquítica, havia percorrido com ele, um homem da roça, experiente, mais que duas vezes o perímetro inteiro dos cinco hectares de terra sem ao menos sentar para tomar água do galão - que ela mesma carregava nas costas.
Mencionava coisas que ele nunca tinha ouvido falar, mas que ela garantia que eram cruciais para a propriedade. “Como é que se fazia um exame do solo? A enfermeira de terra ia lá com uma seringa gigante e mandava pro laboratório? Parece piada”, ria o velho.
A menina puxava as raízes do capim brachiara que o velho tinha orgulho de possuir, e chamava de ultrapassado. Agora ele tinha que plantar um capim novo com nome que parecia estrangeiro. Até na cerca parecia ter defeito, e, se é que o velho entendeu bem, os produtores agora usavam cerca elétrica nas propriedades. Ela disse que o falatório continuaria no dia seguinte, porque ela não esperava encontrar um lugar tão mal cuidado assim.
Com excessão de Capitão, vira-latas que sempre o acompanhava, Eli estava num mato sem cachorro.
Foi apenas depois da segunda dose de analgésico que as pernas o deixaram pegar no sono, com os pés cheios de bolhas.
No dia seguinte, o velho não aguentou:
— Quer saber? Ninguém tá obrigando a senhorita a trabalhar comigo. Se esse sítio não estiver à sua altura, você pode ir, que eu me viro sozinho.
Depois de um momento a moça sentou-se ali no barranco mesmo, os ombros baixos revelando a real natureza da situação. Eli pôde ver dor em seu rosto. Depois de um pequeno período do que o velho julgou ser reflexão, a moça apoiou as palmas das mãos no chão e, olhando para o campo ao longe, disse:
— Não, Seu Eli, eu não vou embora. O sítio do senhor é a minha primeira e única chance de fazer alguma coisa certa aqui em Ribeiro Alvo - anunciou, num suspiro. — Se eu não conseguir ajudar o senhor, meu emprego aqui já era. É isso.
O rosto de Eli passou por uma mudança brusca.
— Mas logo o meu sítio, Melinda? — Era a primeira vez que a chamava pelo nome. — Nem eu sei se isso aqui tem jeito…
— Tem que ter, Seu Eli. Se o senhor não quiser mais a consultoria, pode me falar que amanhã mesmo eu já me demito. Mas se a gente começar, eu prometo que não vou descansar até achar um jeito.
O velho sentou-se ao lado da menina. Diante deles, o sol poente aquecia o ar e jogava sombras compridas no chão de mato verde. Libélulas cruzavam velozes o caminho até a mata, onde o riacho se escondia.
— Eu agradeço muito — respondeu o velho, depois de um momento de hesitação. — Mas é que eu não sei mesmo nem por onde começa. As coisa que você falou do sítio é tudo verdade, tá tudo errado. Mas será que eu consigo arrumar?
— A gente consegue, Seu Eli. Eu, você e mais algum milagre muito rápido se precisar. Mas, sim, a gente consegue.
O coração do velho se aqueceu com aquelas palavras, e depois começou a queimar como há muito tempo não sentia. Lembrou de Ingrid, a única que até então acreditara nos seus projetos tanto quanto ele. Queria que a outra pessoa fosse sua filha. Mas ali estava a filha de alguém que precisava acreditar.
II
Havia muitas coisas que Eli não sabia como fazer, quando ou por onde começar na transformação do sítio em uma propriedade leiteira rentável de verdade. Mas havia algumas coisas, poucas, sim, mas que ele sabia, e a elas se agarrava com toda força.
Eli finalmente sabia o que fazer para não só preservar, mas expandir o seu legado. Sabia que devia parar de trabalhar muito com o corpo, para trabalhar mais com a cabeça. E para quem? Sua filha, com certeza.
O velho também havia descoberto por que fazia o que fazia. E isso, caro leitor, exige uma dose de sabedoria e investigação que poucos espécimes humanos já alcançaram nesta terra. “Tenta ouvir as palavras de Deus, irmão”. É claro que ele não tinha todos os pormenores da situação, mas, assim como o Senhor chamou Abraão para uma terra que Ele mesmo ainda não havia revelado, Eli sabia que Deus o chamava para sair da situação em que estava. Para onde? Isso não importava ainda.
E, com o pouco de informação que tinha, o velho trabalhava.
Havia um ponto na cerca da propriedade, por exemplo, que sempre arrebentava no mesmo lugar. Vez após vez, conserto após conserto, era sempre o mesmo palanque caído, o de esquina com a estrada de pedra e o terreno vizinho. Quando isso ocorria, era um Deus-nos-acuda para buscar o gado que saía desembestado pela estrada.
O compadre Jorge sabia bem disso e demorava de propósito para buscar a sua própria parte do gado que escapava para o lado de Eli. Às vezes virava o dia com dez, vinte bezerros esfomeados do lado errado da cerca, tirando as barrigas da miséria na brachiara de Eli que, “apesar de não ser capim chique de nome estrangeiro, enche o bucho do mesmo jeito”. Ou, pelo menos, mais do que aquela coisa raspada do outro lado.
“Trabalha com a cabeça, seu velho teimoso”, murmurava para si.
O corpo do velho ainda colaborava, colocando o palanque de eucalipto tratado de volta no lugar e jogando mais terra em volta. É claro que Melinda estava junto, sempre, o tempo todo, fazendo o que podia. Por mais que fosse trabalhadora, contudo, isso não mudava o fato de que estava visivelmente tão cansada quanto o velho. O boné não conseguia esconder o suor na testa que a menina limpava com as costas das mãos já sensíveis pelo uso recente da enxada.
— Eu falei que era pra usar luva, menina teimosa.
— Se você não precisa de luva, eu também não preciso.
Melinda apoiou no palanque recém posicionado por um momento. A moça conseguia jogar todo o peso no apoio sem que ele se mexesse um milímetro para fora da cerca. “Mas claro”, pensou o velho, “é porque ela está na parte de dentro. Com o tempo a força que a cerca faz de fora vai empurrar o palanque pra dentro de novo. A não ser que”...
— Pega minha serra lá no galpão.
— Serra? Mas a gente não tá consertando a cerca?
— Só pega.
Eli voltou com mais dois palanques de eucalipto e alguns restos de madeira no trator do compadre Jorge. Ele que venha buscar.
— Mas você tá desenterrando o palanque do lado?!
— Isso, menina esperta. Faz a mesma coisa com o outro lado. Agora toma esse toco e coloca assim, de atravessado.
A veterinária sorriu.
— E agora, Seu Eli?
— Agora me dá a serra.
O trabalho não terminou tão cedo.
O sol se levantou no céu e se abaixou do outro lado; a chuva grossa veio e se foi, os bezerros do compadre Jorge apareceram e depois perderam o interesse, mas Eli e Melinda ainda estavam lá. O capim molhado fazia escorregar o solado da bota; o suor seco no corpo fazia a brisa soprar mais gelada. As curicas já voltavam para a mata, e a coruja buraqueira já ensaiava os primeiros voos quando, sem dizer palavra, os dois sabiam que tinham concluído um ótimo trabalho.
— Eu nunca mais quero arrumar esse palanque de novo — ria Melinda.
— Pelo menos por muito tempo, menina. Muito tempo.
O observador atento que visse de fora enxergaria, através da estrada de pedra, por trás do corredor de pés de eucalipto, um velho e sua aprendiz orgulhosos de resolverem seu primeiro de muitos problemas juntos. E veriam uma solução muito comum, na verdade, para esquinas de cercas, que consistia na instalação de treliças, geralmente do mesmo material dos palanques, a quarenta e cinco graus do chão, fazendo força contrária à tensão que vinha de fora com os fios de arame.
De alguma forma muito nova e muito estranha eles também se sentiam mais fortes contra as tensões de fora. O capim escorregadio já não era um desafio para quem quisesse firmar os pés no chão. E, assim como Abraão seguia um caminho desvelado diante de si dia após dia, passo após passo, decisão após decisão, Eli e Melinda também tinham mais uma pequena porção da estrada sendo clareada diante de si.
A seguir: Novos desafios pavimentam o caminho.