Da autora
Deus já usou uma mula pra falar com Balaão, e continua usando os meios mais improváveis possíveis (e impossíveis?) para fazer com que a gente ouça a Sua voz.
Não adianta, somos indesculpáveis.
Não vá dizer que não avisei.
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Anteriormente:
Eli recebe uma proposta arriscada de Gabriel, que por sua vez tem seus primeiros contatos com Melinda - de maneira desastrosa.
IV
Na ligação para o pastor, à noite, como não pretendia revelar muita coisa, resolveu aceitar o que, para o velho, era o conselho mais genérico de todos:
— Tenta ouvir as palavras de Deus, irmão.
— E como é que Deus há de falar com um bicho bronco desses?
— Mas é o que ele mais faz, seu Eli! Ele fala na bíblia inteirinha de cabo a rabo, ele fala com a natureza, os bichos, ele fala com as coisas que acontece com a gente.
Eli fez que entendia, mas sua expressão dizia o contrário.
— É só a gente parar pra ouvir.
E no dia seguinte, Eli pulou cedo, como era costume dizer. Pular era uma palavra muito forte, claro, para alguém que acordara de madrugada de joelhos ao lado da cama. Passaram-se bons minutos até que o velho conseguisse se mexer. “Bom, Deus, o senhor me desculpe se deixei o senhor falando, mas é que eu tô velho e não tenho mais esse pique de antes”, ria.
“Dois anos para arrumar o sítio. Isso já é mais tempo que ‘muito rápido’, verdade”, pensava, “mas ainda pode ser que eu precise de um milagre”. A região lombar recebia pontadas de dor, lembrando-o da sua condição.
Apesar de ter, de fato, acordado mais cedo, foi só bem mais tarde que conseguiu ordenhar a impaciente Malhada, que já mugia na entrada da mangueira.
— Olha pra você ver, Malhada, — dizia o produtor para o seu animal — tem um moço querendo ficar com você se eu não conseguir cuidar bem desse lugar. O que você acha?
A vaca não se dignou a interromper sua refeição.
— É, também acho, parece que esse dia nunca ia chegar.
Entre um jato de leite e outro, o velho pensava.
— E aquela tal de veterinária, vindo da cidade, nem tá acostumada ainda com a roça, tem coisa aí, você não acha, Malhada?
Parece que a vaca não achava.
— Certeza que eu vou ter que ensinar tudo para aquela menina. Vai ver é isso que o Gabriel vai ganhar. Ela aprende tudo e aí depois ela pode fazer as coisas de veterinária dela com os outros, que têm muito mais gado do que eu. Arre. Como é que eles ordenham tudo aquilo?
O leite espumava no balde, e os gatos já estavam à espreita.
“Será que eu vou saber quando for a minha última ordenha?” A coluna reclamava. E Mocinha, logo atrás, também fazia o seu protesto.
— Calma, menina, você não vai ficar sem ordenha, não. E só que… quem vai saber se eu tenho mais dois anos de vida pra gastar no sítio? Ou mais um dia que seja?
Dessa vez, Malhada levantou a cabeça do cocho, virou seu pescoço grande e encarou o velho por alguns segundos, para ver se tinha escutado direito. Depois, voltou a comer.
— O Gabriel é um menino bom, eu não acharia tão ruim se ele ficasse com essas terra, já que a Fernanda não gosta de lidar com a roça. É isso que eu tô dizendo, não tô deprimido não, se é isso que você pensou.
E dispensou Malhada, permitindo que Mocinha continuasse na conversa.
— Vamos lá. Se eu conseguir virar esse sítio de ponta cabeça e fazer ele dar dinheiro, eu vou poder pagar o Gabriel, vou dar uma vida melhor pra Fernanda, quem sabe até contratar um empregado pra trabalhar pra mim. E o melhor é que eu não vou perder o sítio, Mocinha.
Mocinha bateu os cascos traseiros em aprovação.
— E se eu não conseguir cuidar do sítio, pelo menos eu vou perder ele pro Gabriel, e até pode ser que sobre um dinheiro pra uma casinha na cidade…
Nesse momento, a corda com que Eli amarrava as pernas da vaca havia se soltado e, num arroubo de raiva, Mocinha derrubou o balde de leite com um só golpe. Eli, com o susto, deixou-se cair para trás no banquinho baixo.
— Ah, mas vocês estão muito malcriadas hoje, isso sim.
V
Depois de recompor-se, Eli mudou de roupa e foi para a cidade, decidido a pelo menos dar uma satisfação para o coitado do Gabriel que devia estar esperando uma resposta.
Na recepção da associação, Seu Zé fazia o recebimento de uma caixa de mercadoria.
— Bom dia, Seu Eli, espera um pouco, já chamo o Gabriel. O menino tá avoado, que o senhor nem pensa…
“Claro que penso”, deduziu Eli. “Coitado do menino”.
Enquanto esperava, reconheceu o motorista do caminhão de leite, vindo ali para fazer apontamentos. Em seguida, Seu Zé levava para o galpão a caixa, juntando-a com algumas sacas que o próprio Gabriel ajudava a guardar. Da porta da recepção era possível ver o rapaz encurvado com o peso de algum insumo nos lombos. “Logo ele, que podia ficar só no escritório”, notou o velho.
— Então, Seu Eli, o senhor pensou com carinho na proposta que eu te fiz? — dizia o rapaz, mais tarde, limpando o suor da testa. Algo dizia ao velho que aquele suor não era só por conta do esforço físico.
— Olha, menino, vamos acabar logo com isso, certo?
O rapaz suspirou.
— Certo, seu Eli, obrigado por vir até aqui…
— O advogado tem que ir lá em casa, que eu quero explicar tudo. E pode trazer a sua veterinária também. Quero conhecer logo essa menina.
A seguir: Melinda visita o sítio de Eli.
Essa semana finalizei a leitura de Mary Barton de Elizabeth Gaskell, uma história que se passa em plena revolução industrial em Manchester.
Ela acabou me lembrando muito o estilo do Charles Dickens, e não é pra menos: ele foi o editor de Elizabeth nesse caso. Originalmente, a história continha apenas o arco de John Barton, o pai de Mary, como principal, mas o editor aconselhou a inserção de um romance, e foi o que a autora fez.
O enredo todo é muito bem amarrado, as descrições são bastante imersivas também. Temos cidade, navio, indústria, tribunal, e até uma morte misteriosa para desvendar. São tratados também temas importantes como o perdão e a relação patrão/empregado, bastante debatida na situação da indústria têxtil.
Peguei essa versão com 462 páginas: