Da autora
Com o tempo, a história vai falando por si mesma, nós vamos nos tornando mais íntimos, e a minha presença se torna menos necessária.
Aos poucos, posso e devo me ausentar, para assim continuar respeitando a inteligência do leitor. A história tem mais graça assim.
Mas não é uma ausência real, é claro. Como diria Flaubert: “o autor na sua obra, deve ser como Deus no universo, presente em toda a parte, mas não visível em nenhuma”.
E é claro que, como não sou nem Flaubert e nem Deus, nós nos vemos do outro lado.
Até já!
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Anteriormente:
Eli compra o tanque resfriador, e Fernanda faz uma cena quando descobre.
I
O centrinho de Ribeiro Alvo tinha um certo ar de cidade grande nas segundas-feiras, mesmo que entre pancadas de chuva. As cadeiras nas calçadas eram mais escassas, mas isso se devia unicamente à chuva, que não era páreo para a força de vontade e determinação daquelas bravas senhoras, que continuavam seu nobre ofício de vigilância do lado de dentro das casas ou mesmo sob guarda-chuvas nas vitrines e na praça. As lojas de roupa estavam especialmente movimentadas, com o início do mês e a chegada do outono à vista. Eli teve que dar a volta na avenida principal para conseguir estacionar.
Em tons de azul e branco, o antigo prédio barroco que sediava o banco exibia uma pequena fila colorida do lado de fora. De qualquer forma, o curioso fato de o crédito ter sido negado tinha que ser averiguado. O caso era que, na imaginação limitada de Seu Eli, este salário a que se dá o nome de aposentadoria era uma porção grande demais para ser gasta por alguém com modos tão frugais quanto ele, que até dois anos atrás havia vivido muito bem sem salário algum, apenas com os proventos da roça. “Não há de ser nada”, disse para si, “deve de ter relação com o cartão de crédito, é só conversar com o gerente pra tirar a limpo”.
Dentro da agência, o ar condicionado fez Eli desejar estar no sítio; mas apenas o fez se lamentar por esquecer a sempre fria condição do lugar. Os outros clientes, igualmente, encolhiam-se em suas poucas blusas enquanto seus pés enrrugavam-se nos sapatos molhados. Mas o atendimento seguia de forma rápida. Um sinal luminoso na única televisão do lugar indicava a senha, e alguém das fileiras de cadeiras acinzentadas se levantava e sentava em uma das cadeiras azuis, diante de um atendente de uniforme e perfume forte. As mães com crianças pequenas comemoravam cada senha que era chamada, e os seguranças torciam o nariz com a algazarra dos pequenos, perguntando-se porque os seres humanos não nasciam todos adultos.
A chuva lá fora engrossava, ao passo que endureciam-se as articulações do velho Eli. Os nós dos dedos enrijecidos eram estalados para passar o tempo até que a TV o chamou, não pelo seu nome, como esperava, mas pelo seu número. Mais uma vez, lamentou-se por esquecer a sempre fria condição do lugar.
Entre um espirro e outro, o gerente explicava para Eli alguma coisa complicada que ele havia feito no passado, antes até de construir a casinha da Fernanda e as paredes de alvenaria em torno da casa principal. A palavra “hipoteca” parecia importante, pois era repetida várias vezes. Eli queria falar com o seu antigo gerente; com ele as coisas pareciam muito mais simples, mas esse novo, mais moço, garantia que era melhor assim.
Ouviu algumas vezes as palavras “leilão” e “empréstimo rural”, proferidas em tom de urgência. Suas mãos finas faziam gestos como se alguém pegasse alguma coisa atrás de si e ampliasse essa coisa em cima da mesa, como uma grande massa de pão que levedava. Depois mostrava números na tela, chamava o colega do lado para confirmar alguns comandos, ia para dentro de algum lugar e voltava com expressão de derrota nos lábios. Depois tentava explicar outra ideia ou conceito específico do mundo das finanças mas que, na opinião dele, todo mundo deveria conhecer. Eli também pensava que todo mundo deveria conhecer algumas coisas da roça. Outro dia ele deu uma galinha de presente para uma festa da igreja e, quando chegou na festa, nada da galinha aparecer porque disseram que não sabiam o que fazer com ela, acredita?
Mas o moço não queria saber o que se fazia com galinhas. Ele corrigia o rumo da conversa, falando em coisas como IGP-M e a alta do dólar, mencionando a inflação e o salário da aposentadoria. Mas ainda assim eram apenas como nuvens impedindo-o de ver a verdadeira realidade.
— Certo, moço, mas o que o tanque tem a ver com tudo isso? Eu vou ter que devolver?
— Devolver? — riu o moço, com rugas de preocupação espalhadas por todo o seu ser. — Seu Eli, considerando toda a quantia atrasada no pagamento daquele empréstimo antigo, as negociações, os juros sobre juros, os impostos renegociados…
— O tanque, moço.
— O tanque é o menor dos problemas do senhor, é o que estou tentando explicar. Se algum milagre não acontecer muito rápido, o senhor pode perder o sítio.
II
“Perder o sítio”. Aquelas palavras atingiram a boca do estômago e deixaram o velho produtor sem ter o que dizer por um tempo. Como foi que chegou a esse ponto? Perder o sítio. Nem toda a chuva de Ribeiro Alvo lavaria aquelas palavras da sua mente. Com as mãos por dentro dos bolsos, Eli procurava algo em que seus pensamentos pudessem se apoiar por um instante. Algo real, qualquer satisfação mínima que lhe desse forças para caminhar novamente, qualquer vela mirrada de esperança em que sua alma pudesse se aquecer.
“Um café não seria má ideia”, pensou ao deixar que suas pernas o levassem ao restaurante do mercado, que servia de padaria após o almoço. Fez o pedido e sentou-se ao balcão de imitação de mármore, mas seu espírito se concentrava em um pedido um pouco mais elaborado. “Se algum milagre não acontecer muito rápido”, pensava, “mas que tipo de milagre acontece assim, meu Deus? Será que eu ainda tenho salvação?”
Enquanto bebericava o pingado e mordia mecanicamente o salgado assado com carne moída, o velho recebeu uma companhia inesperada. Era Gabriel, da APRA, com um saco de pães franceses a caminho do caixa. O menino estranhou a cara do velho:
— Hei, Seu Eli! E o tanque, não tá acostumando?
— O quê? Não, menino, não é isso não. Eu vim do banco agora.
— Do banco? Tá tudo bem?
— Eu vou dar um jeito, nem que eu tenha… — Eli se deteve. Nem que tenha o quê? Sem o sítio, ele não tinha mais nada, só Deus. Mas, curiosamente, a mesma coisa que o fez entrar na padaria também o fazia querer falar. — Nem que eu tenha que vender o sítio. Deve de ter comprador, não é?
— Mas o que que é isso, Seu Eli? Não, o senhor vai me explicar direitinho o que aconteceu.
Gabriel sentou-se ao lado do velho, que pôs-se a contar todos os pormenores, conforme o seu entendimento acompanhava, desde a chegada do tanque, passando pelo almoço no dia anterior, até a conversa com o gerente do banco. O rapaz ouvia com o que Eli julgava ser uma profunda transparência de sentimentos, pois seu rosto havia ficado completamente vermelho até as entradas dos cabelos ralos, e fazia interjeições intercaladas com gestos de espanto e de indignação.
Depois de um momento em silêncio, o que era raro em Gabriel e sugeria um esforço mental atípico, o rapaz se pronunciou:
— Digamos que eu até sabia uma pequena parte da história. O pessoal da igreja acabou comentando, e, bom, sou eu quem cuida da conta do senhor lá na APRA. — Dizia APRA com um erre puxado que evidenciava a sua origem interiorana, a despeito dos seus contemporâneos.
— É mesmo, nem perguntei porque você não foi ontem.
— Sim, na verdade eu estava ocupado com alguns detalhes. Veja bem, vou fazer uma proposta pro senhor. É pro senhor escutar até eu acabar de falar, pensa com calma na sua casa e me fala depois o que acha.
Eli concordou, ainda que meio surpreso.
— O senhor sabe que o sítio do senhor tem um lugar muito especial aqui dentro. — Dizia, batendo no peito. — Eu tive que batalhar muito pro leite do senhor continuar sendo aceito na APRA, sabe? A gente não precisa de pouco leite, muito menos de latão como era o caso do senhor até pouco tempo. E o empréstimo do tanque, eu praticamente tive que assumir o risco sozinho. O senhor entende isso?
O velho assentiu com a cabeça.
— Então. Acontece que eu tô trabalhando demais pra comprar a minha própria terra, desde que eu comecei na APRA eu tô juntando. Mas só tá aparecendo terreno torto e longe de Ribeiro Alvo, que não me interessa.
— Mas o sítio não tá à venda, não.
— Eu sei, escuta. A proposta é a seguinte: eu assumo o risco de todos os empréstimos do senhor, a gente marca direito com um advogado pra ficar tudo certo, e enquanto isso o senhor vai me prometer que vai dar um jeito nesse sítio que é pro senhor me pagar depois, daqui uns dois anos.
— Dar um jeito?
— Isso, dar um jeito. Um jeito que o senhor nunca deu na vida. Vai correr atrás de tratar direito das vacas, vai arrumar a sala de ordenha, isso, a mangueira, fica tranquilo que eu pego os equipamentos, o senhor não merece morrer na praia assim depois de tanto trabalho duro. E se em dois anos o senhor não conseguir me pagar nada, o senhor me vende o sítio, deixa por escrito no advogado. E se o senhor me pagar, eu tenho meu dinheiro de volta com juros e posso comprar o meu sítio em outro lugar. Só não dá pra eu investir mais que o valor do sítio, senão não dá certo. Mas isso é praticamente impossível de acontecer.
Eli olhou perplexo para tudo aquilo. Era muito para digerir.
— Ah, mas tem mais uma coisa. A APRA acabou de contratar uma veterinária, ela ainda tá lá no escritório, mas é pra começar o trabalho com os associados logo. A minha condição é que o senhor deixe a menina te ajudar. É, ela é de cidade, e pelo jeito é o primeiro emprego dela, e eu confio no senhor pra tratar ela bem. Não, não, não. Isso não é negociável. A minha proposta depende do senhor aceitar a ajuda dela. Ela vai ajudar, sim, a moça é esforçada, tá devorando os catálogo dos produtores, dos equipamento, ela não desgruda o olho do trabalho, a gente tá dando uma chance. Não, não fala nada. Só pensa certinho com os botão do senhor e me fala depois. Passa bem, Seu Eli.
Ainda sequestrado pelo arroubo que lhe provocara Gabriel, Eli fez força para pensar. Na xícara, o pingado tinha esfriado. O salgado estava na metade. Gabriel levou seus pães para o caixa e nem olhou para trás. “Um milagre muito rápido”...
III
Gabriel também fazia força para pensar depois daquela conversa. Quando chegou na associação, o pessoal reunido na copa reclamava:
— Ah, o Gabriel deve ter visto passarinho verde pra demorar desse jeito — dizia Dona Julieta, pegando a mortadela na geladeira.
— E que passarinho verde que tem pra ele ver em Ribeiro Alvo? Acho que viu foi urubu preto, pela cara — investigava Seu Zé do almoxarifado. Os outros já foram mais diretos e arrancaram o saco de pão das mãos do rapaz.
— E então, Gabriel? Verde ou preto? — interrogou a moça nova, uma certa Melinda, querendo parecer engraçada. — Vai dizer que chegou outra veterinária querendo emprego? — perguntou, antes de dar um gole no seu leite de soja.
— Não, é pior — foi o que o pobre rapaz conseguiu pronunciar.
A moça, que não esperava essas palavras, quase engasgou-se. Mal sabia ela o que Gabriel tinha passado nos minutos anteriores, e que suas palavras nada tinham a ver com o momento presente, muito menos com sua interlocutora. Melinda agarrou-se à ideia de que não estava se esforçando o suficiente e a seguir agarrou novamente a pasta de documentos que estava examinando, assim que limpou o suco do canto dos lábios. Enquanto Gabriel tinha dificuldade de alcançar o tempo presente, Melinda chegava no futuro em milésimos de segundos.
— Não, não foi o que eu quis dizer — defendeu-se o rapaz.
Os ouvidos atentos de Dona Julieta já estavam a par de tudo.
— Tudo bem, eu já tinha que voltar, mesmo. Tenho que acabar de olhar essas ordenhadeiras do catálogo e o último produtor. — “E ele ainda deve estar sendo gentil comigo”, pensava consigo, imaginando o profundo abismo existente entre a sua formação teórica e toda uma vida de experiência prática que qualquer um ali com certeza teria.
— Se você quiser, eu posso te mostrar as ordenhadeiras do estoque, não sei se você já viu alguma.
— Você acha que eu nunca vi uma na minha vida? — Perguntou, preocupada. De todas as pessoas que (ela sabia) não desejavam sua presença ali, logo Gabriel seria uma delas?
— Não, é que você é da cidade, talvez as dos seus livros não sejam as mesmas que tem aqui. Se quiser, eu te ajudo a pegar. — Emendou o rapaz, gastando toda a sua capacidade mental num último esforço de consertar o rumo da conversa.
— Eu não preciso de ajuda — afirmou, resoluta. Se ele não a suporta, ela que não faria esforço para agradar.
Seu Zé agora também era todo ouvidos.
— Então você é daquelas que não precisa de homem?
— Eu cheguei até aqui sozinha, não cheguei?
— A minha sobrinha de oito anos vai pra capital de ônibus, também. E já mexeu com ordenhadeiras por muito mais tempo que você, isso eu aposto.
— E tira leite todo dia.
— Muito mais que você.
— Aposto que ela nunca fez inseminação artificial com melhoramento estratégico da carga genética do bando. Agora se me der licença eu tenho que trabalhar.
E saiu batendo duro os pezinhos em direção ao seu computador, sem dar chance de réplica. O cabelo esvoaçante da moça passou muito perto do nariz de Gabriel, que empenhou o que restava dos seus neurônios em irritar-se ao máximo com aquela mecha castanha que o tocara. Aquele perfume doce que Melinda deixou ao passar, contudo… “Não aguentaria um dia no campo com o cheiro de esterco”.
Dona Julieta sorriu para Seu Zé quando viu a expressão desconsolada do rapaz Gabriel: os olhos distantes, a boca aberta, o rosto em brasas e meio pão francês com mortadela numa das mãos. E disse, baixinho:
— Verde, eu sei.
A seguir: Eli é obrigado a tomar uma decisão.
Ah! O capítulo ainda vai continuar, mas como já passava bem do tamanho normal, deixei um pouco para semana que vem.
Enquanto isso, vamos deixar a Melinda e o Gabriel se estranhando mais um pouquinho… e a gente aproveita pra curtir o lançamento da Angélica Pina inspirado no caso real do dono de cafeteria que marcava encontros falsos para ganhar clientes. O livro é esse aqui, veja:
O clima é de comédia romântica mesmo, com um narrador que literalmente conversa com a gente quando lê. Eu gostei bastante. Vale dizer que a história não acaba no “felizes para sempre”, e também tem muitas reflexões edificantes. Fica a dica.