Chegando agora? Veja do começo:
Da autora
Mudar cansa, incomoda.
É preciso uma quantidade enorme de energia para quebrar a inércia do estado inicial. Por mais que seja um risco calculado, não há como ignorar o incômodo de dar um passo no escuro. Um passo de fé? Ou loucura inconsequente? O que diferencia um de outro?
Talvez a fé seja uma espécie de loucura e os cientistas estejam certos o tempo todo.
Mas sei de uma fonte (bastante respeitada, aliás) que a sabedoria de Deus é loucura para esse mundo.
No final das contas, há de se escolher entre o incômodo de mudar e o incômodo de não saber como seria se…
Bom, aproveite a leitura!
Bianca
Anteriormente:
Melinda chega a Ribeiro Alvo, e Eli compra o tanque.
I
Fevereiro havia passado aos trancos e barrancos, e a chegada do natal era mais provável que a do dia sete de março. Até lá, nenhum esforço era poupado: desde o reforço na adubação do pasto, até os alongamentos em casa do jeitinho que a fisioterapeuta indicava, passando pelo almoço com mais verduras e menos toicinho, tudo o que Eli podia fazer para colaborar com o novo passo dado era feito com espero e esperança.
O velho balde de alumínio na ordenha ganhara novas marcações para sentir no volume do leite as mudanças do trato, e a mangueira até passou a ganhar um banho diário no final do dia, “que é pra começar o dia com o pé direito”, dizia Eli. O esterco ao redor era removido com mais frequência e armazenado em sacas para jogar no pasto com o trator alugado do compadre Jorge e economizar com insumos.
O desejo mais ardente de Eli, depois de tantos anos, estava um passo mais próximo de acontecer. Todos aqueles anos de trabalho, afinal, não foram inúteis! O patrimônio ainda que modesto que Eli e Ingrid construíram juntos não terminaria no esquecimento, afinal. O legado do sítio poderia continuar, estabelecer-se e andar com as próprias pernas e, quem sabe assim, Fernanda visse de uma vez por todas que o pai a amava. “Talvez assim, quem sabe, eu possa me redimir e ir embora dessa vida deixando algo de bom pra trás.”
A chuva enchia o ar com seus ruídos naquele dia. Os pingos grossos do meio da tarde tornaram-se em cortina espessa de água, de fazer correnteza no caminho do gado. As trocas de roupas eram frequentes, e o entorno do fogão a lenha já se enchera de varais improvisados nas cadeiras. Eli arrumava o compartimento da lenha, colocando um pallet para impedir a umidade de entrar, e empurrando todo o conjunto para mais perto do fogo, “porque lenha molhada só há de fazer fumaça”, lembrava. As galinhas escondiam-se com as suas crias embaixo de qualquer arbusto que encontrassem, e o velho produtor também desejaria se esconder embaixo das cobertas até o tempo melhorar, mas havia algo que desejava ainda mais: era sete de março.
O café forte ajudava a controlar o sono após o almoço. Diante do tempo fechado, o vapor da água se abria em flores etéreas sobre o filtro na garrafa. Ingrid nunca deixava a água ferver, para não queimar o sabor do café. Em consequência, Eli sentia no aroma carregado o cuidado da esposa alcançando-o ali, há décadas de distância. Mas outro sentimento mais forte o enchia ao ingerir o líquido estimulante. O velho fechou os olhos e sentiu uma parte de si atravessar o teto de telhas de barro em direção ao céu, indiferente à chuva torrencial, assim como o vapor do café.
Logo em seguida uma buzina fazia-se ouvir na porteira vermelha. A capa de chuva transparente acompanhou o velho, que acompanhou o veículo até a entrada da mangueira. Quase pensou que a entrega seria cancelada por conta do temporal, mas o motorista comentou que a nota fiscal vinha marcada com um pedido de urgência pelo pessoal da APRA.
A chuva não deu um minuto de trégua, e portanto a entrega e instalação fora feita assim mesmo, com várias idas e vindas do caminhão, da casa, da mangueira. A perna afundava na lama até a altura do meio da panturrilha, tamanho aguaceiro que molhava a terra. Andar não era apenas uma tarefa suja, portanto, mas cansativa. O suor misturava-se à chuva no corpo, o quente da pele no gelado da água.
Eli seguidas vezes parou para esticar o corpo que, apesar do clima quente, já enrijecia com a friagem. Numa dessas paradas, reparou em algumas entradas ou saídas, no topo e na base do tanque, e se perguntou para que modernidades seriam - e se viria a usá-las um dia. Ele, um senhor de sessenta e dois anos que mal sabia mandar mensagens no celular.
Mas a instalação finalmente foi concluída. Eli olhou para a roupa escura por baixo da capa. O velho estava encharcado, assim como o entregador.
— Vai um café, um chá de hortelã, amigo? Tem melissa e cidreira também.
— Seu Eli, eu agradeço demais, mas se o corpo esquenta a coragem de ir embora diminui, e nós fica querendo gripar.
— Mas passa outro dia então pra eu servir um café pro senhor, eu sou macaco velho, aprendi a fazer pão e até bolo, sabe como é viver sozinho.
— Sei, sim, Seu Eli. Obrigado.
Poucos minutos depois de o entregador ir embora e o velho lavar o tanque, o céu se abriu, permitindo que a luz do poente desse à cena uma coloração dourada que chamava toda a bicharada para fora. As galinhas voltaram com seus pintinhos, cantando baixinho, atrás da quirela de milho. Os pardais faziam o coro geral do pomar, e as maritacas, os grandes sopranos do local, eram os arautos do ocaso. A movimentação das aves chacoalhava os galhos das árvores, fazendo uma chuva de pingentes dourados na relva verde. O cheiro úmido subia da terra com as notas amadeiradas da lenha no fogo, um prenúncio do feijão tropeiro requentado lentamente.
Pela primeira vez desde que começou a vender o leite para a associação, Eli não precisaria sair com o carro na manhã seguinte. Sentia suas esperanças renovadas, seu sonho brotando verde novamente como o capim depois da chuva. “Não fosse a canseira, acho que eu ia é ficar acordado até amanhã só pra ver o tanque enchendo pela primeira vez”, pensou. Mas a verdade é que dormiu cedo aquela noite, sonhando sonhos verdes e frescos.
II
Fernanda parecia incomodada nos últimos dias. Os grandes olhos negros, que em geral assumiam uma expressão de desdém, apresentava um olhar novo - ou, melhor dizendo, um velho conhecido - um olhar de soberana ofendida, contrariada, talvez, Eli não sabia dizer.
— A maionese tá boa, filha? Eles colocaram uva passa, mas o seu potinho tá lá separado…
— Não, pai. A maionese tá ótima.
O velho voltou a se sentar no seu lugar na ponta da grande mesa, mergulhando novamente no burburinho alegre da casa cheia no primeiro domingo do mês. Ajeitou a gola da camisa de botões e olhou à sua volta: os irmãos da igreja, tanto os mais velhos quanto os mais novos, sentiam-se bastante à vontade na grande varanda da pequena casa. Dona Josefina e as outras comadres haviam monopolizado a área esquerda do fogão a lenha que dava para a pia, com incursões regulares aos armários na parte interna da casa. As crianças corriam alegres por todo o perímetro, com excessão da antiga casinha na árvore, por respeito a Fernanda. Os adolescentes espalhados pelas muretas da varanda conversavam e riam, e os homens exprimiam suas opiniões sobre a política, os esportes e a nova geração.
Esse era o costume no sítio: a igreja inteira, uma vez por mês (no começo era até uma vez por semana), se organizava para levar uma refeição decente para o viúvo e sua filha. O combinado havia partido das mulheres, cansadas de levar travessas e mais travessas de comida no período inicial do luto. O pastor logo endossou a ideia e mobilizou todo o seu pequeno exército para os domingos no sítio, garantindo que o anfitrião tivesse tudo o que precisava, desde os reparos externos feitos por ele e todo o ministério de homens até aulas de culinária ministradas pelas mulheres mais velhas a todos que se interessassem.
E o cardápio não era ruim: apesar da escassez financeira, a abundância dava o tom. Desde o final da aula bíblica, as batatas cozidas passeavam pelas mãos que as transformaram num purê adicionado de cenouras, vagem, milho e azeitonas para a salada de maionese. As panelas de pressão assobiavam no fogo a deliciosa canção do músculo sendo transformado em carne de panela. As mãos hábeis das senhoras ensinavam as das moças a nobre arte de descascar o alho: uma pancada inicial com o punho sobre a faca soltava a casca do dente e, após mergulhado na bacia de água quente, rendia-se aos dedos detalhistas.
— Tá sabendo da menina nova que chegou na APRA, irmã? — comentava Dona Julieta.
— É aquela da cidade? — perguntava uma das comadres.
— Mas ela vai cuidar de vaca? — perguntava outra.
— Ouvi dizer que é filha de crente, desviada. Não boto fé — arrematava ainda uma outra irmã.
— Mas eu boto fé, e em Deus — ria Dona Josefina — que essa menina há de almoçar aqui com a gente um dia.
Aquilo foi o suficiente para arrancar risadas soltas da mulherada, embora soubessem que a irmã Josefina não costumava brincar no seu serviço de mulher do círculo de oração.
E assim tomava forma o grande buffet com carne, batatas, maionese, alface, tomate, pepino, arroz, macarrão e feijão, com uma mesinha à parte só de limonada e refrigerantes.
Após a oração de agradecimento, os presentes se reuníam do melhor jeito possível em torno da mesa de apenas doze lugares e faziam o velho se sentir parte de uma família muito maior e mais feliz.
Mas Fernanda estava incomodada. Ela e Raul chegaram mais tarde, como de costume, e sentaram-se nos lugares reservados a eles na própria mesa, com os velhos e as crianças. Também eles vestiam roupa de domingo, mas os rostos tinham a canseira de segunda-feira.
Raul, que não tinha problemas com multidões, logo começava a contar ao irmão Sebastião a sua história favorita: o dia em que pescara uma tilápia gigante no açude da propriedade vizinha e saiu sem que dessem conta. Fernanda via de regra costumava fartar-se o mais rápido que pudesse e esperar até a sobremesa para levar um pote para casa. Mas naquele dia mal tocava na comida e olhava a todos pelas laterais com a cabeça baixa e as finas sobrancelhas erguidas em expressão de desprezo. Mais de uma vez ela tentou falar alguma coisa, mas desistiu por conta do tumulto geral. Aquelas pessoas a queriam bem e nutriam um carinho pela filha do anfitrião, mas não mais a conheciam. Eli, por outro lado, previa tempestade:
— Experimenta o macarrão, então, Fernanda. É alho e óleo, do jeito que você gosta.
— Foi você que comprou, papai?
— Eu não sei, talvez tivessem pegado esse do armário, por quê?
— Ah, você deve ter comprado o macarrão, a carne, tudo o que tá aqui e mais um pouco.
— Eu não tô entendendo.
— Eu fiquei sabendo, tá?!
Nesse momento, alguns curiosos involuntariamente voltavam a atenção para a conversa.
— Sabendo o quê?
— O rombo na conta do banco, eles negaram crédito pra eu trocar de celular. Aposto que foi pra encher o bucho dessa turma todo mês aqui.
— Eu falei que vou te dar um celular no natal… — prometeu o pai, enrubescendo.
— A minha tela tá quebrada agora, papai! Não no natal. Vou ficar nove meses esperando? É filho, agora? O que aconteceu que você não pode me dar o celular agora, hein? Eu não posso trocar a tela! É pelo menos uns trezentos reais e eu não tenho isso.
— Tenha paciência, minha filha, é coisa boa…
Agora mais pessoas faziam silêncio; alguns por curiosidade, outros por desconforto.
— Coisa boa? O quê, tá bancando outro filho de pobre que eu não conheço? De pobre já basta a gente!
— Para com isso, minha filha. Eu peguei um equipamento pro leite, é isso.
— Equipamento pro leite? Mais? Já não tem o trator do Seu Jorge?
— Esse é um tanque, pra guardar o leite.
— Ah, tenha santa paciência, além de velho tá ficando preguiçoso! Esse leite é um ralo de dinheiro nessa casa, nunca deu nada de bom pra gente!
— Mas você tem que confiar, vai ser bom pra gente, o leite vai melhorar.
— Melhorar como? É um tanque mágico, que aumenta o leite assim? — Fernanda estalou os dedos. — Quando você só perdia tempo com isso eu até tolerava, mas agora tá perdendo dinheiro.
Fernanda saiu da varanda pisando firme, arrastando Raul consigo. O velho foi deixado ali, encurvado na cabeceira da mesa, rodeado de pessoas que o faziam se sentir parte de uma família maior e mais feliz. Mas nada disso adiantava naquele dia, pois Fernanda estava incomodada.
III
O resto do dia seguiu com o mínimo de ruído possível. As pessoas da igreja, entendendo que a festa acabara, logo trataram de sumir sem deixar rastros - apenas o cheiro de desinfetante no chão brilhoso e os montes de comida guardada indicavam que sua presença fora vista ali.
A tarde chegou e se foi na mesma tristeza muda: as galinhas pareciam ter outro lugar mais interessante para ciscar, e por fim se empoleiraram para dormir mais cedo que de costume. As maritacas cantavam baixinho, distante, em respeito à ferida aberta no velho. As árvores cochichavam ao longe, enquanto o rebanho encarava parado o deslocamento do uno surrado em direção à igreja. Os sapos cantavam uma música melancólica empertigada de saudade e pesar.
No culto da noite, igualmente, o silêncio reinava. As bocas dos cantores se mexiam, mas nenhum som saía de suas gargantas; o pastor falava, gesticulava, mas o microfone era inútil e, no final, compadre Lourenço apenas o olhava desconfortável enquanto tomavam juntos o café de costume, enquanto crianças mudas riam suas risadas afônicas e corriam nas pontas dos pés. Apenas uma voz falava, intrusa, como um zumbido agudo e constante nos ouvidos.
Seria irresponsabilidade o que Eli acabara de fazer, apertando perigosamente o cinto das finanças para adquirir mais um equipamento? O Lourenço não teria problemas em pegar o tanque de volta se fosse o caso, provavelmente. A rotina com a viagem diária ao centro nem era tão ruim, e nem foi isso mesmo que prejudicou a sua coluna. A voz era de fato persuasiva. A vida antiga era desconfortável, sim, mas conhecida; a nova, só tinha uma garantia, que era justamente a de ser desconhecida, e isso em geral não era bom. Quem confirmaria que haveria qualidades?
Pensando bem, essa voz era uma velha conhecida. Assim como a cara de incomodada de Fernanda, a voz amarrava as mãos e os pés do velho há anos num limbo que sugava suas forças e fazia o menor dos movimentos ser comparado a uma maratona. O velho esfregou a testa com as pontas dos dedos numa tentativa de trazer clareza. O quarto em si estava quase escuro, com a fraca lâmpada amarela iluminando diante de si a mesinha de cabeceira com os porta-retratos. Eli desejou ouvir alguma coisa que não fosse aquela voz. Tentou esboçar uma oração, mas apenas um gemido de cansaço ousou sair do limbo da sua alma fatigada.
Entretanto, um barulho despertou Eli de seus pensamentos. Era um sapo desgarrado coaxando na porta da cozinha, de certo havia ficado preso para dentro quando as saídas foram fechadas. O velho o devolveu à natureza, surpreso com sua habilidade em fazer isso de forma tão rápida, com a coluna daquele jeito. Do lado de fora, o animal continuava o seu discurso ritmado, como que explicando qualquer assunto em detalhes para o seu interlocutor. O que ele estaria falando?
Não importa. A voz foi embora - e não voltaria tão cedo.
A seguir: A situação financeira do sítio é pior do que parece.
O que achou da atitude de Fernanda? Já conheceu alguém assim? Ainda bem que a maioria das pessoas com quem convivo só me inspiram gratidão.
Falando nisso, quero agradecer a você que se tornou assinante pago! Meu coração transborda de alegria ao ver tamanha confiança no meu trabalho.
Entretanto (porém, todavia, contudo)…
Quero, antes de habilitar os pagamentos, saber como posso retribuir toda a confiança depositada. Penso em liberar o livro inteiro como PDF ou .epub na área paga, assim você já pode ler sem interrupções no seu kindle ou dispositivo preferido. O que acha? Tem alguma outra coisa que gostaria de receber? (Lembrando que O Legado de Arruda não ficará gratuito para sempre… [risada maléfica])
Mas o livro já foi escrito!?
SIM!
Ele está aqui, com quase 51 mil palavras, esperando para ganhar o mundo! E já passou por uma leitura crítica maravilhosa, que é um serviço que garante que não haja furos de enredo ou falhas no tema, por exemplo.
Deu trabalho? Deu. Custou dinheiro? Claro. Mas, olha, valeu cada segundo e cada centavo investido. Pelo menos pra mim… e você, o que tem pensado?