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Da autora
Esse capítulo é dedicado a todos os impostores do Brasil.
Já sentiu que está numa posição que não merece ocupar, ou dando passos muito maiores do que suas pernas aguentam? Eu, já.
Tem dias que parece mais fácil me contentar com menos, e evitar os desafios que o Senhor me colocou à frente, esquecendo-me da graça que vem do alto.
Mas então eu me lembro da fé. A certeza das coisas que ainda não se veem.
E continuo, “impostora”, sobre a vida. Porque de fato não sou merecedora de nada, mas recebo com alegria os presentes que me são dados por Ele.
Aproveite a leitura!
Bianca
Anteriormente:
Eli considera a compra de um tanque resfriador, mas o preço está além das possibilidades.
I
— Mas esse povinho da APRA deve de estar se achando muito importante mesmo… — comentou Seu Zé do almoxarifado com Dona Julieta, da limpeza.
— E por que isso? — indagou a interlocutora, curiosa.
— Olha, eu passei na copa e os grandão tavam falando de chamar até veterinário pra trabalhar aqui. Como se a gente não soubesse cuidar de bicho.
— Compadre, não é que eles vão mesmo pegar?! Eu tinha esquecido de falar! E é uma menina de fora, eles contaram pro pessoal na sexta, o compadre tinha saído mais cedo, achei que já sabia.
— Mas que desaforo! Fiquei sabendo agora de pouco, se não sou eu que pergunto, ninguém me fala mais nada aqui!
— Pois então! Ela deve de estar chegando essa semana, vai ajudar os produtor com as vaca, os parto…
— Mas de fora?! De cidade?
— Isso mesmo. E é novinha, ainda por cima!
— E esse povinho novo entende de gado, é?
— Muito me admira que ela queira vir pra esse fim de mundo, isso sim. Se fosse neta minha eu mandava é trabalhar com escritório, limpinha…
— E não com vaca com a roupa cheia de estrume!
Os velhos amigos riram.
— Vamos ver quanto tempo ela dura aqui. Eu aposto que não passa da experiência. — afirmou Dona Julieta.
— Eu tenho certeza que ela não dura uma semana aqui, isso sim! — Atestou Seu Zé.
II
Dormir em viagem era sempre desconfortável, mas a chegada da manhã estava gloriosa. O vidro da janela no ônibus-leito estava embaçado com a diferença de temperatura, mas ao limpar com a mão era possível observar o sol tímido dividindo o mundo entre tons de verde claro e de verde escuro. O milho crescia fresco nos campos de verão, intercalado com tapetes extensos de soja rasteira e algumas pastagens. Aqui e ali, um riacho cortava a paisagem, a despeito das cercas entre as propriedades, fazendo um caleidoscópio de verdes que era um deleite para os olhos.
“Deve ser umas cinco e meia”, pensou Melinda ao abrir os olhos.
Num movimento discreto, estalou o pescoço rígido e mexeu os ombros morenos sob uma grossa blusa de lã marrom. Num impulso muito seu, ajeitou num coque baixo o grosso cabelo castanho. Os joelhos por pouco não encostavam no banco da frente; era preciso sentar de um jeito específico, com tendência à diagonal, para ganhar certa margem.
Melinda Fernandes abriu o celular e confirmou as informações de horário e destino; Ribeiro Alvo seria a próxima parada. A oferta de emprego lhe caíra como uma luva: logo após a acertar a certificação do Conselho, uma vaga no interior do estado, longe dos pais, sem pré-requisito algum. A remuneração até que não era tão ruim, considerando o tamanho do lugar e, de qualquer forma, ainda tinha algumas economias que poderia usar até se instalar.
“Contanto que eu não volte mais para aquela casa, fico até de graça”, dizia consigo. Durante toda a sua infância, adolescência e até depois da faculdade Melinda não se lembrava de desfrutar de um dia inteiro de paz em sua própria casa. Assim que pôde, portanto, arranjava desculpas para ficar fora o máximo de tempo possível - o que foi bastante fácil na época da graduação, de fato - mas agora a medida parecia mais definitiva. “Eles não vão me ver nesse fim de mundo. Muito menos agora depois da última briga”.
A pauta era sempre a mesma: para eles, a filha deveria ser moça de igreja, cantar no coral, ler a Bíblia e orar, aquela coisa toda desde criança. “Acontece que eles mesmos nunca fizeram isso”, defendia-se a moça. A mãe condenava os filmes sangrentos, mas assistia novelas com temáticas libidinosas; o pai era um irmão exemplar dentro dos domínios do pastor, mas em casa não se podia dizer o mesmo. Com o tempo, o mal-estar generalizado em torno do assunto só aumentara, até que chegara o fatal ponto de ruptura em que a filha rebelde praticamente fugira da casa paterna para nunca mais voltar.
Atuar como veterinária seria um adicional bem-vindo à experiência, uma vez que desde formada a moça de vinte e cinco anos não havia ainda se permitido dar esse orgulho - talvez a ela mesma, talvez aos pais. Em vez disso, enfiava-se em cozinhas de fast-food, estoques de shoppings, sempre longe do público e do prestígio que julgava não obter. Apesar de ser sempre a funcionária mais dedicada, fazia isso sob uma máscara que escondia certa autopiedade e martírio.
A vaga era, portanto, uma chance de mudar as coisas, sem confrontar ainda completamente sua síndrome de impostora, “afinal, são rurais cuidando de gado, não tem erro.” Melinda não se atreveria a cuidar de gatos de raças raras com tumores malignos, companhia de velhas senhoras ricas. “Mas vacas de produtores boçais? É só um pouco de sujeira aqui, algumas palestras ali e já me destaco como em todos os outros lugares. Uma questão de tempo.”
Depois de se lavar no banheiro do veículo, tirou da mochila gasta uma pasta com as suas principais consultas: as doenças mais comuns, as raças mais produtivas, os antibióticos e suas respectivas carências, a alimentação, o maquinário…
Até que o ônibus desacelerou para a entrada do distrito de Ribeiro Alvo.
III
Enquanto isso, Eli pensava consigo que as chances eram mínimas de Fernanda concordar com a compra do tanque. “Era muito grande, muito caro, e para quê? Só daria mais trabalho depois,” dizia Eli enquanto arrancava as ervas de rato do pasto. As ervas daninhas haviam tomado conta; em qualquer direção em que se olhasse, as perigosas plantas se destacavam vários palmos acima da pastagem de brachiara mal adubada.
“Compadre Maurício já perdeu um bezerro por conta disso. Eu não posso me dar essa barda”, pensava. As pequenas flores amarelas e vermelhas eram um dos efeitos colaterais de se estar próximo a uma área de preservação ambiental: elas saíam da mata de alguma forma e ganhavam terreno aos poucos na pastagem, alimentando-se do sol e dos nutrientes aplicados na área de cultivo. A Palicourea marcgravii precisa de apenas poucas gramas para fazer grandes estragos, chegando não raras vezes até a morte dos rebanhos. “Um pouco de fermento leveda toda a massa”, lembrou o velho.
Mesmo com o sol a pino, Eli não conseguia descansar. O almoço veio e se foi, e o costumeiro sono da tarde ainda não havia chegado. Quando seu espírito estava de tal forma inquieto, o velho não conhecia lugar melhor para pensar do que ao ar livre no pasto. Ali, na ausência de qualquer presença humana, havia algo de transcendente que o fazia se sentir mais perto de Deus.
Apesar do sol forte de janeiro, as lufadas de vento que vinham da mata corriam, rasteiras, acariciando o capim, fazendo seu caminho até o rosto enrugado do velho e traziam refrigério. Ele olhava em volta, tomando consciência de que aqueles alqueires de terra não eram apenas fruto do seu suor, ou da Ingrid, muito menos eram um fardo a carregar. Ilusão de menino? Muito menos. “Não fui eu que pintei o céu de azul anil. Meu Senhor, não fui eu que fiz crescer o riacho de água que nem cristal, que dá até pra ver o chão.”
As mãos calejadas arrancavam com experiência as plantas daninhas pela raiz, impedindo assim que voltassem a crescer no mesmo lugar. Mas enquanto a vida endureceu as juntas dos dedos e engrossou as mãos, o espírito se amolecia como manteiga ao sol, tornando-se mais sensível às sutilezas do Espírito, ainda que não completamente.
O velho daria um braço para ouvir diretamente da boca de Deus a resposta para a compra do tanque. Mas, no fundo, ele sabia que nem sempre as coisas funcionam dessa forma. E, ainda que funcionassem, ele ainda teria que falar com Fernanda.
A caça às ervas daninhas afastou Eli da estrada de pedra que delimitava a propriedade ao norte e o levou em zigue-zague até o baixio depois da estufa, de onde podia ver a casinha em que Fernanda morava com Raul, o namorado. Por trás da roupa estendida, podia ver a filha torcendo a próxima remessa no tanque de pedra. Vestia um avental jeans com bolsos por cima da sua roupa de casa, uma calça preta justa e camiseta cinza estampada, com chinelos de dedo. O cabelo preso rente à cabeça se abria depois do elástico, como que liberando a tensão de suas molas em largas espirais. Raul, por certo, estava dentro da casa, pois era possível ver uma pequena faixa da TV ligada na sala pela janela.
O velho fez sinal com o braço, mas sem gritar. Fernanda, ao mancar de volta para o varal, viu o sinal:
— O que você quer, pai? — gritou.
— Você tá boa, filha?
— Fala logo, tô ocupada aqui!
Eli hesitou.
— Deixa pra lá, Fernanda.
E a filha voltou aos seus afazeres, sem ao menos esboçar um cumprimento. O pai ficou parado por alguns segundos, como que invisível, com o saco de ervas de rato no ombro direito. Imaginou o riso de deboche que viria após um comentário sobre o tanque de seis mil reais. E todas as dívidas? E os gastos, e os tratamentos, remédio custa uma fortuna, e o celular da Fernanda que tá com a tela quebrada, e o churrasco de todo domingo, e o conserto do telhado? Um sonho de menino.
O sítio era um sonho, sim, mas sonhado junto àquele capaz de dar a vida. Não foi por egoísmo, nem por vaidade, que há quarenta anos Eli e Ingrid saíram da cidade grande para começar na roça do zero. Aquele lugar tinha médico, padaria, feira, mercado e até igreja, “tudo pertinho, de a par, nem precisava de carro”, o velho lembrava. Ali, ao contrário, eram pelo menos vinte quilômetros até a parte urbana do distrito. Também não era por preguiça, mas por que era, então?
Eli sentia, de alguma forma muito vaga, que o sítio era a sua pequena participação no grande plano de Deus para o ser humano. Não porque Deus precisasse dele, mas porque ele precisava agradar a Deus, assim como uma criança arranca pequenos tufos de mato com a mão enquanto o pai carpina o quintal. Ela se sente útil, amada e valorizada, ainda que o pai precise antes soltar as raízes com a enxada, facilitando o trabalho do filho. “Solta as raízes pra mim, meu Deus.”
IV
Soltando a saca no monte de descarte da semana, Eli se encheu de ânimo. “Olha esses pasto tudo limpo”, constatou com orgulho. Ignorando a dor, pensava até em continuar a tarefa no outro dia. “Mas não agora, porque agora eu tenho uma coisa pra fazer”.
A tarde se apressava no horizonte. Pelos cálculos já passavam das três, talvez já fossem quatro horas, mas não cinco, porque o sol ainda não tocava os eucaliptos. A brisa fresca estava mais forte, e o cheiro úmido da mata subia ligeiro, prenúncio do coral de sapos.
Entrou no banheiro que havia na parte de fora da casa, mas não sem antes tirar as botas de trabalho. Esse era um dos costumes que Ingrid custou a ensinar, mas que, uma vez ensinado, ficou gravado a ferro na mente e nos hábitos do velho, a ponto de sequer pensar em como foi que começara a fazer tal coisa.
Depois de se lavar e mudar as roupas, ajeitou o cabelo com o pente de bolso que via de regra só levava aos domingos. Vestia a calça jeans sem furos que estava pendurada no varal, e uma camisa limpa verde de tecido respirável, brinde de natal da cooperativa de crédito.
Ao encaminhar-se para o carro, reparou que mancava com o lado da coluna que repuxava a perna. “Agora seremos pai e filha mancando”, sorriu. Foi em estado de agitação que fechou a porteira vermelha do sítio, entrou novamente no uno 2007 e se enfiou na estreita estrada de pedra. O carro dava solavancos com o percurso, o que tornava impossível acelerar muito. A solução era aproveitar a paisagem visível por entre as árvores do corredor de eucaliptos. Em alguns pontos a estrada se elevava e era possível ver, ao longe, as curvas de nível nas plantações de soja. Outras vezes, nos pontos mais baixos, via-se os bezerros brancos de gado nelore buscando abrigo do sol na sombra que o corredor verde fazia. Em raras ocasiões, quando algum deles se assustava com o barulho do motor, e saía correndo em disparada, era engraçado ver todo o rebanho a segui-lo, umas trinta ou quarenta cabeças fazendo o chão tremer com o deslocamento brusco de seus corpos imponentes e pesados.
Fenômeno parecido ocorria toda tarde por volta desse mesmo horário com as curicas, como Eli conhecia, ou maritacas, como Ingrid chamava. Inicialmente distribuídas pelas árvores, camufladas, o bando surpreendia o espectador ao sair em revoada e revelar uma nuvem verde que transportava o seu canto estridente de um lado para o outro da estrada, até chegar à mata na nascente nos fundos da propriedade.
Uma vez na pista, ainda que em área pouco povoada, a velocidade era ditada pelos horários da cidade. As curicas não mais atravessavam o caminho; o gado, por sua vez, dispersava-se lá nas lonjuras do mar verde, e logo se transformavam em pequenos pontos brancos. Havia apenas o tapete cor de grafite e a rara companhia dos espécimes humanos em suas carcaças de metal veloz, rumo a qualquer coisa inadiável, inatrasável, urgente. “Mas que monte de bestas”, dizia Eli consigo, enquanto fazia o mesmo.
Já dentro do centro urbano o ritmo se acalmava novamente, e provocava nos passantes aquela canseira gostosa de cidadezinha do interior. A avenida principal ainda apresentava o calçamento em paralelepípedos, e aqui e ali ainda era possível ver construções do período da sua fundação, nas remotas eras do ciclo do açúcar. O cartório do Seu Rogério mesmo era uma propriedade tombada, uma fachada rente ao recuo da calçada com estilo rococó e paredes tão grossas quanto o tronco de um homem. Entre as pequenas portinhas de lojas de roupas, pastelaria, sorveteria, lojas agropecuárias, viam-se salpicadas algumas casas de modelo popular com os muros baixos e cadeiras de balanço no quintal, a maioria de compadres e comadres antigos e conhecidos nas redondezas.
Os veículos andavam devagarinho, cumprimentando os amigos, olhando as vitrines, os cartazes amarelos de promoção do mercado, os motoristas torcendo para fechar o único semáforo que havia, porque assim ganhavam impressão de sofisticação e também tempo para olhar. Os pedestres eram tudo menos uniformes: mulheres com crianças de colo, ou mesmo uma turma de crianças maiores, discutiam alto sobre tomar sorvete na praça ou levar um pote para casa. Homens com botinas e jeans entravam e saíam direto de galpões com sacas imensas de insumos e ração; outros, com trajes mais formais, trocavam de lugar com os colegas nas farmácias, saíam de escritórios de advocacia, contabilidade, engenharia.
Mas o tipo mais comum, apesar de tanta variedade, sem dúvida, era o homem idoso. Ele, sim, o verdadeiro flâneur, espécime social em extinção do século XXI, o homem idoso era o dono das ruas em Ribeiro Alvo. A mulher idosa nem tanto, já que - as que não criavam os netos para os filhos - estavam em sua maioria sentadas nas cadeiras pela calçada ou por trás das cortinas, garantindo o sistema de vigilância mais eficiente já conhecido. E, para flanar, logicamente, era preciso caminhar.
Um bom flâneur, que justificasse o pertencimento à categoria criada na Europa e aperfeiçoada no Brasil, andaria desde cedo pelo centro comercial, mas não bastava apenas andar. Flanar era uma arte que incluía conhecer todos os comerciantes, os frequentadores dos comércios, das praças, das igrejas, sim, mas também dos cartórios, dos escritórios e cooperativas. Um bom flâneur não se intimidaria com os conceitos modernos de privacidade ou segurança da informação; ele teria a bravura de se colocar a par de exatamente tudo o que estivesse ao seu alcance. Esse flâneur brasileiro veria com novidade a chegada de um certo produtor rural no centro a essas horas da tarde na associação. Ele observaria o cabelo e as roupas trocadas, sinal de que algo importante estava para acontecer. O destemido flanador não se deixaria barrar na porta; já diziam os sábios que o Brasil não é para amadores. Ele iria até a sala de espera para ouvir, perguntar e jogar os seus verdes, para colher os maduros. Ele saberia tudo sobre uma moça nova, veterinária, que estudava a fundo a papelada dos produtores sem mal parar para almoçar, e riria com gosto do prognóstico fatídico que a aguardava quando os papéis por fim se transformarem em lama, capim e pelos. A mesa da nova funcionária, toda bagunçada com os arquivos, era a evidência definitiva de que ela não daria conta - pois organizar uma propriedade rural era, como pensavam, tarefa muito mais trabalhosa que uma simples mesa de fórmica, numa sala com ar condicionado e ao abrigo da “verdadeira” vida real.
Ainda antes de partir o nosso bom flâneur veria, satisfeito, um certo produtor endividado, pela fresta de uma porta, rubricando o canto de algumas páginas numa prancheta e apertando mãos. E, por fim, veria o velho produtor saindo com um folheto em preto e branco nas mãos sobre algum equipamento grande, um largo cilindro de metal.
A seguir: Fernanda sente falta de dinheiro no momento mais inoportuno.
É, escrever isso deu um trabalhão. O meu sonho é que alguma editora séria reconheça as referências, o esforço, a brasilidade e a teologia que procurei empregar aqui. Considere compartilhar com alguém que gostaria de ler. Fale de mim no Instagram ou na sua rede favorita! É a melhor forma de me ajudar.