Capítulo 3 - O último dos moicanos
Uma proposta inesperada aparece, mas o risco a se considerar é relativamente alto.
Chegando agora? Veja do começo:
Da autora
Esse capítulo é sobre o esforço diário de continuar.
Sobre o corpo que não acompanha mais o espírito, e a dignidade que insiste em resistir.
Enquanto escrevia, pensei no meu próprio medo de depender.
Talvez você também se reconheça nesse dilema.
Com carinho,
Bianca
Anteriormente:
Eli percebe que sua saúde e a situação financeira do sítio exigem uma atitude.
I
Mas havia algo diferente naquela manhã. Ou o sabiá tinha um canto mais brilhante, ou era impressão do velho. O sol salpicava o seu ouro nas gotículas suspensas de água na neblina, fazendo feixes dourados por entre as falhas nas telhas do galpão de ordenha. A gata preta que estava sumida há dias voltou, e dessa vez com crias! Os quatro filhotes mais pareciam pequenos novelos de lã; dois eram pintados de branco na barriga e nas orelhas, os outros dois puxaram completamente a mãe. Um potinho de leite foi separado para eles do lado de fora.
O Capitão, vira-latas amarelo que apareceu um dia há sete anos e não saiu mais desde então, nunca esquentou a cabeça com os felinos, e também nunca quis saber de comer frango vivo. Nesse dia ele ficou deitado ao lado dos filhotes enquanto a mãe gata fazia sua ronda pela primeira vez em muito tempo.
Eli ficou contente ao se perceber grato por conseguir levantar o saco de ração até o cocho por mais um dia sem cair. “O ser humano é um bicho estranho, só agradece o que pensa que vai perder”, constatou. Lembrou da sobrinha do compadre Elias, que maltratava o marido de dar vergonha. “O homem rachava o côco na lavoura de cana, de milho e de aveia pra depois chegar e fazer comida pra ela e as crianças, porque a mulher era moderna e não cozinhava, nem lavava, nem passava. Pensa no apuro que a bonita passou”, sorriu Eli, “quando o marido ameaçou de virar homem moderno também e ficar só de a par da casa enquanto a mulher que se virasse com as contas e os guarás que ficavam rondando”.
Malhada e Mocinha vieram no horário certo como sempre, primeiro a mais velha, enquanto Mocinha esperava pacientemente do lado de fora. Como num acordo não escrito, assim que as patas de Malhada foram soltas e seu leite despejado no latão, Mocinha entrou para a sua vez, enquanto a outra terminava de se alimentar. O observador, ainda que atento, não seria tão capaz quanto o velho de distinguir uma vaca da outra. As jerseys, raça pequena e dócil, tinham todas a peculiar cor trigueira com mínimas variações entre si nos detalhes das orelhas, da cara e dos membros. Mocinha era menor, obviamente; mas logo alcançou tamanho similar à da outra. A produção das duas também era similar: dez litros diários de um leite gordo e forte. Ingrid preferia esse ao das holandesas enormes dos outros produtores. “Se é pra fazer leite aguado, eu mesma boto água então”, dizia. Ingrid era tão criteriosa a respeito da qualidade do produto oferecido que não se importava tanto com a quantidade; e talvez achasse parte de seu dever defender as criaturas de pequena estatura, pois, afinal, “os melhores perfumes estão nos menores frascos”.
O sol fazia seu caminho no céu e estava um pouco mais alto hoje quando Eli acabou todo o processo. Talvez o canto brilhante do sabiá fosse realmente apenas uma impressão. O observador atento que olhasse sem parcialidade veria um idoso, mesmo que lúcido, lutando contra os grilhões do desgaste e da doença que, cada vez mais pesados, atrasavam Eli em cada uma de suas tarefas.
As vacas foram gentis ao acelerarem o passo em direção ao pasto desta vez, poderia pensar o velho, mas aconteceu de elas apenas estarem com pressa de completarem a sua rotina. “Vaca adora rotina, que nem eu. A gente combina”, afirmou.
No piquete dos pequenos, a cerca que havia sido destruída agora estava mal remendada com um pedaço podre de madeira fazendo as vezes de palanque. A causa da tentativa de fuga do bezerro jamais fora descoberta. Poderia ser qualquer coisa entre saudade da mãe (o que era pouco provável), um animal peçonhento ou um bicho de pelo querendo se aproveitar dos pobres coitados (o que era bem mais provável). “Compadre Jorge disse que viu uma onça uma vez, se bem que faz mais de ano já. Eu não dei conta de barulho de lobo, mas faz uns dias, talvez eu esteja misturando tudo”.
Era custoso segurar o balde enquanto os bezerros bebiam o leite. Eles faziam força com a cabeça hora para baixo, hora para cima, e os músculos lombares de quem segurava deviam manter o equilíbrio entre acompanhar o animal e estabilizar o líquido para não derramar. “Os bichinhos pensam que é igual mamar na mãe, porque tentam dar cabeçada nela pra fazer descer mais leite, como a Criação é perfeita”, pensou o velho, como que repetindo para si mesmo seu mantra de otimismo na esperança de que isso fizesse sua realidade melhorar.
Quando conseguiu chegar novamente no carro, encostou as mãos na lataria azul para endireitar as costas, mas afastou-as com rapidez, pois já estava quente. “Agora é só na graça de Deus pra aceitarem meu leite”.
Mas a graça de Deus tinha outros planos para Eli.
II
A Associação dos Produtores de Ribeiro Alvo foi em dez anos de um pequeno apanhado de gente para uma corporação de peso. O folheto no balcão informava o produtor sobre compra, venda e distribuição dos mais variados insumos, ferramentas e produtos finais, da ração ao leite pasteurizado, do trator à ordenhadeira.
As instalações com acabamento simples na antiga casa no centro que abrigava a sede não faziam jus à influência que a APRA alcançara no pequeno distrito. O portão preto em ferragem aberta dava passagem para uma rampa dupla de cimento batido, como que para guardar algum veículo na garagem logo sem seguida. Esta, que há muito tempo tivera sua função transformada, era pavimentada com pisos em tons de sépia com padrões florais dos anos 1960. Apresentava três fileiras de cadeiras diante de um balcão cinza de fora a fora, com acesso controlado para o interior da casa. Uma senhora simpática e grande fazia a função de atendente, secretária e copeira. Na parede adjacente uma TV de cinquenta polegadas entretia os mais velhos, enquanto os mais jovens olhavam cada um para sua própria tela particular.
Na parede oposta havia um acesso para um barracão que já estava no terreno novo, onde ficava o maquinário, e onde Eli entregava o leite toda manhã.
— Isso lá é hora de entregar leite, seu Eli? — disse Gabriel Basso, o segundo no comando do local. A frase era repetida com tanta frequência que há tempos perdera seu impacto de cobrança e tornara-se quase que uma espécie de saudação.
— Bom dia, menino! Posso deixar aqui a par dessa caixa, não posso? Minha coluna está difícil hoje. — O jovem podia ter quase seus trinta anos nas costas, mas a partir de uma certa idade, os mais velhos enxergam apenas crianças diante de si. E Gabriel ainda era criança diante de Eli, do mesmo jeito que sua filha Fernanda.
— Hoje, ontem, semana passada… Seu Eli, o senhor sabe que é o último dos moicanos que ainda traz o leite no latão? Eu respeito muito o senhor, o senhor me conhece desde criança e por isso eu tolero ainda, mas isso não vai durar pra sempre, não.
Gabriel era a gentileza em pessoa. Até quando repreendia um dos seus produtores ou colaboradores, exalava um ar de acolhimento quase paterno, típico do seu temperamento. A sua constituição física ajudava a completar a impressão: apesar de robusto e forte por conta da natureza do seu trabalho, que envolvia ajudar a carregar e descarregar fardos de produtos, possuía uma camada insistente e contínua de gordura, mais proeminente na barriga. As crianças o chamavam de ursão polar, e os adultos de alemãozão, menos Eli. A camisa tipo polo azul marinho da associação contrastava com o amarelo gema do cabelo ralo na cabeça calva, mas o jeans claro e gasto era de um azul quase tão apagado quanto o dos olhos espremidos entre as bochechas vermelhas de esforço. O rapaz estendeu a mão para o velho:
— Eu fiquei sabendo do problema de saúde do senhor. Não acha que tá na hora de simplificar a labuta, não?
— Sabe, menino, na verdade eu acho, sim. Eu sei que tem umas modernidades que o povo fala que ajuda a gente na lida, mas eu sou macaco velho, nem sei por onde começa.
— Olha, seu Eli, a associação tem um caminhão que pega o leite dos produtores sem custo, quer dizer, o preço que o senhor recebe já tá descontando, igual todo mundo.
— Como é que faz pro caminhão ir buscar o leite lá em casa, então? É muito complicado?
— Depende do que o senhor acha complicado. O caminhão vem a cada dois dias, e pra isso o senhor tem que guardar o leite num tanque resfriador, que tem lá o seu preço.
— É muito caro esse tanque?
— Seis mil reais, o menor de quinhentos litros. Mas é aquela coisa…
— Meu senhor, mas eu não faço nem cinquenta litros!
— É o que eu ia falar. O senhor tem que ver certinho porque é um passo importante.
— Não tem menor, não?
— Aqui na cidade, não. Só se pedir, mas aí é mais de mês pra chegar.
Eli suspirou de desânimo.
— O que eu quero dizer é que esse tanque seria um passo importante se o senhor quiser mesmo aumentar a produção. Pensa: só de não vir aqui todo dia, o senhor ganha um tempo bom que podia estar fazendo mais coisa lá no sítio. E tem o gasto de combustível também. Depois se sobrar dinheiro dá até pro senhor pegar uma ordenhadeira e parar de tirar leite na mão, se quiser. Mas pensa certinho, porque o tanque é sempre o primeiro equipamento pra quem tá começando. Sem ele, o resto nem adianta. Mas, com ele, o senhor abre um par de possibilidades. E a gente sempre tá aqui pra poder ajudar.
Aquilo deixou o velho pensativo.
Por mais que tentasse se enganar, sabia que apenas o otimismo cego não o levaria a lugar algum; era preciso tomar ação. Mas seis mil reais, em pleno ano de 2017! Aquilo era dinheiro. Sempre era possível parcelar a perder de vista, mas isso também significava um compromisso a perder de vista, um compromisso inclusive com um certo aumento de produtividade. Isso quer dizer mais vacas, mais ração, mais dinheiro. Dinheiro para ganhar dinheiro. O que a Fernanda diria?
A seguir: Uma nova chegada agita as coisas em Ribeiro Alvo.