Capítulo 2 - Chamada perdida
Eli deve decidir o rumo da propriedade com a nova condição de saúde. Problemas financeiros batem à porta.
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Da autora
Esse capítulo me doeu para escrever.
Falar de perdas que não saram, de silêncios que gritam, é como tocar uma ferida antiga — minha, sua, nossa.
Mas também há beleza na dor reconhecida.
Que você se sinta acompanhado por entre as palavras.
Com afeto,
Bianca
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Depois de lutar com um bezerro em agonia, Eli se fere seriamente.
I
Há quanto tempo estaria o velho encurvado na beira da varanda? Era difícil dizer. Quantas vezes teria ele tentado em vão se levantar para depois se acomodar novamente no mesmo lugar? “Bom, a sombra da mangueira ainda cobria o carro quando cheguei aqui, e agora está para lá uns quatro passos, devo ter ficado aqui algumas boas horas”, pensava Eli.
O barracão de ordenha a que dava o nome de mangueira, expressão comum da roça, não passava de uma construção rudimentar de tábuas de madeira sob o velho telhado de telhas de cerâmica, exatamente o mesmo que há mais de trinta anos já servira de acampamento, estoque e, por fim, mangueira. “Dizem que o Filho de Deus nasceu num lugar assim, perto dos bichos, que dormiu no cocho deles”. Para Eli, que nem sempre foi da roça, ter uma mangueira por perto ainda causava episódios de contemplação.
No vento e na sombra, a lama do corpo havia secado, e o esterco já havia perdido grande parte do odor. O sangue dos cortes, misturado ao sangue do animal sacrificado, deu-lhe um lembrete a mais da urgência com sua cor marrom-ferrugem encrustrada nos interstícios de tecido das roupas. “Preciso alcançar o celular, não vale a pena ficar tentando andar a pé se minha coluna resolveu tirar uma folga. Vou ligar para a Fernanda, isso. Ela me leva no banco de trás, que já está sujo, e além do mais não vou conseguir me esticar para sentar no da frente”.
A filha, que já contava com quase trinta anos, havia feito uma casinha de alvenaria logo mais abaixo na propriedade. Ela queria ter a própria vida, longe do pai intrometido, com o namorado. Casar era para depois, porque as coisas estão difíceis.
A casinha até laje tinha, artigo incomum naquelas bandas. A casa principal mesmo foi ganhar um contorno de alvenaria por fora da estrutura de peroba há uns cinco anos ou menos, de tanto os irmãos da igreja comentarem, que não era bom para a coluna ficar “tomando a fresca” da noite. Foi com muito sacrifício financeiro que fizeram isso, pois o velho ficara sem fundos depois da casa de laje da Fernanda, o melhor para a filha.
Depois de entrar no carro com muito custo e constatar o ótimo sinal de celular vindo da antena de rádio da Fernanda, o velho ligou inúmeras vezes para o número, mas sem sucesso. “A Fernanda sempre tem aqueles ataques dela de psicológico, verdade. Quando é assim ela fica sem dormir de noite e capota bonito de dia. Melhor eu tentar outra pessoa, deixe eu ver.”
“O compadre Jorge deve de estar em casa”. Depois de algumas tentativas, o neto passa a contragosto o telefone:
— Desembucha, compadre Eli, que eu tenho que ir na cidade agorinha.
— Mas que bênção, compadre! É que eu tava precisando muito de dar uma passadinha no hospital, se o compadre pudesse me deixar…
— Mas é que eu não vou para aqueles lados não, Eli — recusou Jorge, apesar da enorme distância de cinquenta metros entre o seu destino e o hospital. — E a Fernanda, não pode levar você?
Eli franziu o cenho.
— Ela deve de estar dormindo ainda, compadre.
— Mas então acorda aquela jaguara preguiçosa, uai! Isso lá é hora de dormir? Meus menino e eu já até almoçamos!
— Ela não tem culpa, é os problema psicológico dela.
— Olha, compadre, eu não concordo com essas coisa não. Você dá muita barda pra Fernanda, ela é bicho criado já! Eu não acredito que isso tá certo. E eu não sou obrigado a desfazer das minhas crença pra ajudar os outros.
— Você tem todo direito, compadre, todo direito. Mas é que você já vai na cidade, pode me deixar ali na esquina com a rodoviária que eu vou de a pé.
— Isso vai de encontro aos meus princípios, compadre — retrucou Jorge, repetindo uma frase bonita que escutou na TV. — O senhor tem que ser tratado muito melhor que isso, imagina andar a avenida inteira da rodoviária até o hospital! Eu deixaria o compadre ali na porta da emergência, aliás, até entraria junto pra garantir que os outros estão tratando de você direito.
— Mas não tem necessidade não, compadre…
— Eu insisto! — apelou o mulato bonachão, esticando o indicador em direção ao interlocutor e, como um mestre da oratória, arrematou: — O senhor merece o melhor. Já ficou resolvido. O senhor espera essa sua menina acordar, dá um sermão que é pra ela deixar de ser jaguara, e exige, mas bate o pé mesmo, até ela fazer com o compadre tudinho que eu mesmo faria se tivesse indo para aqueles lados.
— Tá certo, compadre. Deus te abençoe, o senhor é muito bom.
E assim a conversa terminou.
— Ah vá. Esse povo tem que deixar de ser folgado — disse Jorge consigo, orgulhoso.
O sol já estaria baixo no horizonte quando Eli, sujo, travado e cansado, conseguisse ser atendido no hospital.
II
Mais tarde naquela semana, o culto estava particularmente agradável na pequena congregação do distrito de Ribeiro Alvo, do qual Eli fazia parte. O calor aos poucos dava lugar a uma brisa que descia da montanha como um rio, e como um rio entrava pela porta e pelas janelas trazendo refrigério para aquelas almas cansadas e sobrecarregadas.
Os bancos de madeira enfileirados uniformizavam a pequena turba de homens, mulheres e crianças de todas as idades sobre o piso branco barato. As paredes igualmente brancas exibiam pequenos cartazes com os avisos das próximas reuniões, da campanha de oração, das doações para as vítimas das enchentes, das aulas de reforço de leitura às terças.
O palco, por assim dizer, consistia de uma plataforma em concreto por cima do piso e uma bateria bastante conservada pelo preço, um violão, um teclado, acompanhado de um banco, e alguns microfones apoiados em pedestais. Duas caixas de som distribuíam a música a ser acompanhada pelos irmãos. Em sua maioria, as músicas eram as mesmas de duzentos anos atrás, ou seja, tratava-se dos conhecidos hinos tradicionais ou corinhos, considerados mais seguros. Não que o pastor fosse contra a modernidade, mas julgava uma perda de tempo triar todas as músicas novas que apareciam. Para ele, função de pastor era pregar e, como não havia alguém em quem confiasse para delegar tal tarefa, ele simplesmente a excluiu.
O pastor ensinava diante de um pequeno púlpito inteiriço feito do mesmo material dos bancos, e dizia que não devemos carregar fardos que não foram projetados para nós; que apenas dessa forma poderemos usufruir da terra que mana leite e mel. Mas Eli não entendia, pois estava distraído com as puxadelas que o reverendo dava no nó da gravata. “Mas nesse calor, qual a necessidade de usar terno de rico e gravata?”, pensava. “Será que ele pensa que a gente não escuta se ele estiver sem paletó, que nem todo mundo?”
O velho não se julgava um bom entendedor de palavras, principalmente quando as coisas aconteciam de modo contrário. Apesar disso, tentava absorver o ensino principal e meditar nele durante a semana. “De todo jeito, esse homem entende mais de Bíblia do que tudo a gente; o que ele fala deve fazer sentido de algum jeito ou de outro”.
Na saída do culto a lua já brilhava amarela, ofuscando o brilho das estrelas. Com a mesma alegria com que acolheu a brisa do entardecer ao início da reunião, a congregação se espalhou para fora do templo em conversas amenas. Dona Josefina, da cozinha, distribuía saquinhos de pipoca para as crianças enquanto garantia que não faltasse café quente e doce na garrafa. Lourenço, velho conhecido de Eli, trouxe consigo café para ambos.
— A paz, irmão!
— A paz, compadre. — Eli aceitou o café, como sempre.
— Fiquei sabendo da coluna do compadre, e está ruim mesmo então? O que é? — sondou o amigo, notando a mudança na postura.
— O doutor disse que deu hérnia da coluna, mandou eu tomar três remédios já.
— Mas você acordou assim?
— Não, foi um bezerro que me acertou de jeito, e o doutor disse que piorou o problema, mas parece que já devia de estar ali.
— Que papelada, compadre!
— Nem diga. Essa semana foi uma coisa de doido. Quero ver como que eu vou fazer.
— Mas você nem precisa de fazer mais muita coisa agora, está aposentado! Vende aquelas vacas velhas logo que eu compro as terras! O meu filho é doido para morar ali.
— Capaz, o que é que eu vou deixar para a Fernanda, compadre?
— As contas que ela te deu, uai! — riu Lourenço, segurando a barriga com uma mão e o copinho com café na outra. — Compadre, você já está é pra lá de velho, que nem eu, a gente não serve mais pra ficar na labuta da roça, não! E tem mais, se mal me pergunte, o leite que chega do senhor lá na associação mal tá servindo pras suas contas ali. Eu ajudo, boto um preço bom pro senhor, mas é muito pouco leite pra conta demais, e pra trabalho demais.
— Eu sei que você vai falar naquele tanque de novo…
— E é isso mesmo! O compadre é o único que ainda vem na cidade de carro todo dia, e entrega o latão nos menino. Se o senhor botasse um tanque resfriador eu mandava o caminhão dia-sim-dia-não que nem é com todo mundo! Largue mão dessa buxeza, pensa na gasolina que vai parar de gastar!
— E com que dinheiro, compadre? Ainda nem paguei o empréstimo da casinha da Fernanda, o banco não vai liberar mais, não. Mas eu vou matutar certinho no que o senhor está me dizendo, porque o doutor me disse que eu devo de pegar mais tranquilo na roça, mesmo.
O alvoroço pós culto de domingo aos poucos se desvanecia: quem era da cidade ou tinha filho pequeno pensava no despertador e no sono da segunda-feira; quem era da roça, como sempre, já bocejava desde o começo da mensagem e só ficava para poder saber das últimas novidades engolindo o café doce da irmã Josefina. Pouco a pouco os irmãos se despediam, as crianças pequenas subiam para o colo dos pais, cansadas, e deitavam a cabeça nos seus ombros protetores. Cada irmão e irmã saíam em seus carros, bicicletas ou mesmo caminhando em direção a uma nova semana. Os carros dos irmãos mais distantes iam lotados de gente que morava nas proximidades, mas não sem aquela alegria típica de compartilhar, muito comum aos que pouco possuem.
No carro surrado de Eli não vinha mais ninguém desde que o Soares vendeu o sítio e foi com a família para a cidade. Voltou pensando na pregação, na conversa com o Lourenço, nas crianças que dormiam tranquilas no colo dos pais, porque sabiam que ali não lhes faltaria nada. Será que Fernanda já se sentiu assim, em algum momento, por menor que seja? Um pai como ele poderia ter oferecido essa segurança? O gosto de bile lhe dizia que não.
III
Já no quarto, Eli pensava com todas as suas forças sobre o que deveria ser feito a seguir. A coluna não doía o tempo todo, era um fato, mas a lida com a lavoura e com a criação estava cada vez mais lenta e custosa. A cada manhã na mangueira a ordenha exigia mais do corpo do velho. Ele amarrava as patas traseiras da vaca, até agora mais por prevenção que por necessidade. “Essas jerseys nunca foram de chutar, como aquele bezerro. Deve ser o lado bravo do pai”.
Num banquinho baixo de madeira, o velho se encurvava para ordenhar o leite num balde surrado de alumínio. O líquido morno atingia a parede do balde com seu ruído característico e fazia uma espuma densa e cheirosa. Para a vaca, era um alívio livrar-se do leite enquanto ela mesma nutria seu corpo com sua cota de ração ou de sal. Nos dias mais frios, como não havia pastagem, Malhada e Mocinha comiam a cana plantada, cortada e moída no mesmo dia para este fim. Mas como o velho cortaria a cana neste próximo inverno?
Nada do que ali havia estava lá antes de 1981. “Tudo capoeira”, constatava Eli consigo mesmo, “tudo construído no braço, no meu e no da Ingrid”, amargava. “Eu arrancando os tocos com o machado e ela colocando na caçamba da carroça, um por um”. As noites geladas no barracão, abraçados no colchão sobre o chão de terra batida, sob a luz das estrelas que escapavam do telhado inacabado, tinham um gosto agridoce.
A mudança para o sítio era para eles uma promessa de dias melhores. Coincidiu com a consolidação da sua fé e um compromisso renovado com o Senhor. Como na promessa de Deus para o seu povo, Eli esperava que o sítio fosse uma terra de descanso, de refrigério, esperava entrar no seu sábado, numa terra onde sua esposa se transformaria em fértil mãe de filhos e ele mesmo pudesse construir algo de que se orgulhasse.
Bastava levantar os olhos para ver que pouco progresso havia sido feito desde então. As estufas que nunca foram terminadas, as cercas em mau estado de conservação, o pomar abandonado para as seriemas, isso sem falar no pasto cheio de pragas.
No entorno da casa o balanço de pneu jazia abandonado e a casinha na árvore virou ninho de galinha, pois a sua filha, sua única filha, nunca se interessou em subir até lá, apesar da escada com corrimão e degraus grandes que Eli havia feito para compensar a dificuldade no pezinho direito da menina.
Será que ele teria tomado as melhores decisões para ela? Esse pensamento o assombrava com maior frequência nos últimos dias. Pegando o retrato da menina ainda criança nas mãos calejadas, o velho lamentou. Fernanda contava com seus seis ou sete anos na época; o cabelo volumoso cor de café estava preso baixo, por cima do vestido de quadrados amarelos e cor-de-rosa que haviam comprado especialmente para o dia de Natal na congregação. Os bracinhos magros e queimados pelo sol não escondiam a vivacidade de criança que brincava nas clareiras ao fundo. Os sapatinhos vermelhos mal se viam na fotografia antiga, mas provavelmente já estavam com as pontas marcadas pelo uso e pela lama seca. A perna direita, discretamente dobrada para dentro, era uma tentativa frustrada de esconder a prótese improvisada que os médicos do local lutaram para conseguir. Mas era pesada e, de acordo com a menina, feia.
Aqueles olhos grandes de moça determinada, herdados da mãe, pareciam-lhe exigir algo. O que eles exigiam? Eli nunca soube. Pois nenhum brinquedo, roupa, passeio, nenhuma mochila de marca ou engenhoca brilhante ou barulhenta jamais saciou a fome daqueles olhos grandes de jabuticaba.
Talvez aqueles olhos precisassem de Ingrid, a única necessidade que o pai nunca poderia suprir, pois era uma necessidade da qual ele também e tão desesperadamente sofria. E como sofria.
O tempo tinha um efeito ambíguo pois, uma vez que tornava a dor mais tolerável, por outro lado também fazia aumentar a saudade. Por muitos anos havia o consolo de que a propriedade que adquiriram e construíram juntos duraria, cresceria e ficaria como legado para a filha, que daria continuidade ao trabalho dos pais.
Mas a cada ano que se ia, as tarefas por fazer cresciam mais do que as realizadas, no ritmo do envelhecimento do único homem a cuidar daquilo tudo. O sonho de ver seu legado em pleno funcionamento aos poucos assumia as feições de uma ilusão de menino, intimidando-se diante do desafio do homem. E, por mais simples que fossem, a casa, a mangueira, o barracão, a estufa, a varanda, todas essas conquistas que tanto significavam como simbolizavam uma vida de luta e a memória da esposa, tudo isso podia ir embora, agora que Eli não se via mais trabalhando por muito mais tempo. A própria terra em si corria risco de ir a leilão, num caso mais extremo, se o banco não aceitasse mais uma prorrogação das dívidas.
A seguir: Uma proposta inesperada chega, mas o risco a se considerar é relativamente alto.
Eu já fui a pessoa que tentava subornar a própria filha com presentes para suprir a minha falta. Às vezes tudo o que o outro precisa - e não falo só de filhos - é de presença, sinceridade, um coração aberto. Escrever sobre isso é expor um espinho na carne, como um aviso para que outros não caiam no mesmo espinheiro.
Esse capítulo falou com você de alguma forma? Me diga que não estou sozinha.
Eu acabei de ter filho e já tenho alguns desses pensamentos haha Típico da ansiedade humana. Aguardando ansioso pelo próximo capítulo! Ler sobre o café da irmã Josefina me fez até passar um cafézinho por aqui