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Eli descobre que a maior parte da água do sítio tem outro destino.
I
— Eu falei, seu Eli, o senhor é muito bonzinho, tem que aprender a colocar limites nas pessoas — asseverava Melinda enquanto ligavam o carro na volta do sítio do compadre Murilo.
— Aquele Murilo foi demais — concordava Gabriel, ao volante. — Não teve o mínimo senso de educação, pensa só, fazer um açude com a água de outra pessoa!
No banco do passageiro, Eli apenas podia se justificar com base em alguma espécie de acordo não escrito entre cavalheiros que vigorava na época. Compadre Murilo abusou do acordo, certo, mas o que ele podia fazer?
— Dar um basta, é claro! Ele já é homem feito, o senhor não deve nada a ele, nem a ninguém! — dizia a moça enquanto chacoalhava no banco de trás.
A estrada de pedras grandes logo fazia a curva à direita, quando os eucaliptos passaram a esconder o carro do sol escaldante das três da tarde.
— É ali que a sua filha mora? — perguntou a moça, curiosa.
Eli confirmou.
— E ela nunca se interessou por trabalhar no sítio?
— Ih, essa é uma questão delicada — alertou o rapaz, sinalizando o perigo do assunto do modo mais sutil que podia.
— Ela é deficiente do pé, menina — resumiu Eli.
— Mas então quem vai cuidar do sítio quando o senhor… precisar?
— Vocês já não tão me ajudando? — o velho sorria amarelo.
O silêncio reinou pelo restante da viagem curta.
O vento balançava as árvores, fiéis sentinelas, fazendo emanar um cheiro úmido e refrescante, levantando a poeira do caminho que pedia chuva. Na frente da velha porteira vermelha, o carro parou.
— Esperem aqui.
Gabriel desceu do banco do motorista e, antes que a moça pudesse reagir, abriu o portão.
— Ah, mas só porque o seu Eli tá com a gente você quer bancar o cavalheiro? — ria Melinda.
— Você não pode simplesmente aceitar um favor? — Gabriel parecia cansado. Eli, que o conhecia há mais tempo, notava cada vez mais momentos de ruptura no comportamento amistoso do menino. Era como se lembrasse de uma verdade inconveniente que pretendesse esquecer, ou ainda como se sentisse um gosto amargo na boca, não sabia dizer.
No mesmo momento, a moça se arrependia da brincadeira. Ela não sabia como se comportar diante de gentilezas, principalmente masculinas. Sempre fora educada para ser a pessoa mais forte e inteligente do lugar, sobretudo se isso significasse superar o sexo oposto. Longe de ser orgulho, o comportamento era o mecanismo de sobrevivência que a mantivera viva até ali.
Contudo, desde que chegara em Ribeiro Alvo, sentia as coisas fora de controle.
— E você não pode só rir? Era uma brincadeira.
Mas Gabriel parecia ter seus próprios fantasmas para espantar. Melinda deixou-o em paz enquanto pegava o café da tarde do grupo, que ela havia comprado mais cedo e guardado na cozinha.
Na mesa grande, o pão de forma com frios acompanhava rosquinhas doces e o café do seu Eli. O velho parecia apreciar o preparo do café como se estivesse cumprindo um ritual sagrado, enquanto que o próprio Gabriel fazia lanches para os três sem se queixar. Será que só para ela era um suplício o ato de servir? Será que eles não se sentiam de forma alguma prejudicados ao gastar energia e trabalho para outros que podem nem agradecer?
Lá fora o vento soprava mais forte, e por pouco que Melinda não conseguiu impedir que a porta da cozinha batesse num estrondo, segundo pensava. Mas, ao levar as mãos em direção à porta, acabou tocando as mãos de Gabriel.
Os poucos segundos de duração do momento já serviram para aumentar a inquietação da moça. Ainda que rápido, o toque durou um pouco a mais do que um toque acidental costumava durar, assim como o encontro dos olhos de ambos. E, como num lapso espaço-temporal, o chão sumia diante dela.
É claro que o velho nada tinha visto daquilo e, quando voltou com a garrafa térmica abastecida, todos foram para a mesa comer.
— Gabriel, menino, vai lavar o rosto no tanque, você deve de estar com muito calor — intuiu Eli, ao ver a cor do rosto do rapaz.
O rapaz obedeceu com um riso nervoso, enquanto Melinda encarava o lanche.
— Mas e como tá as coisas na associação, Melinda? Gostou do pessoal de lá?
— Gostei, sim, são bem acolhedores — disfarçava, entre uma mordida e outra.
— Acho que você vai gostar de ficar em Ribeiro Alvo. Não é que nem cidade grande, mas tem feira, você já foi na feira de sábado?
— Não gosto de feiras. Muito barulho e muita gente, pra pouca comida — Melinda fazia esforço para se alinhar ao tema da conversa quando o rapaz voltava para o lanche.
— Pouca comida? Não sei o que te davam na cidade, menina, mas aqui tem o melhor pastel que eu já comi, e olha que eu amo pastel — ria o velho. — Eu vou te levar lá essa semana.
A moça assentiu em agradecimento, rendendo-se ao bom humor do velho, e Gabriel comentou qualquer coisa sobre os espetinhos de carne.
— A vida no interior não é tão parada assim, não é?
— Verdade. Eu até poderia me acostumar com isso — admitia. — Quem sabe, se eu ficar.
— Como assim, se ficar? Achei que já tava certo.
— Não, o contrato é temporário… — a moça interrompeu-se. — Bom, o lanche tava ótimo, mas eu tenho que ir ver a Mocinha, que está pra criar.
E deixou Eli com uma expressão confusa:
— Gabriel, eu não sabia nada de contrato temporário, o que que é isso?
O rapaz se sentou de um jeito desconfortável no banco de madeira e pigarreou:
— Ah, seu Eli, a associação tá fazendo um teste com ela. O orçamento é pequeno, então eles vão ver se renovam o contrato ou não.
— Mas coitada, pra que fazer isso com a moça? Ela já tava acostumada, parece.
— Ela tava, sim — dizia, encarando os pés.
— Mas como é que a gente pode ajudar pra ela ficar?
— Ela vai poder renovar o contrato só se ela conseguir fazer a recuperação aqui do sítio. Tá nas cláusulas lá.
— Tá, pera aí, menino. Quer dizer que se o sítio não começar a dar dinheiro, ela vai ser mandada embora da associação?
O rapaz assentiu.
II
Eli pensava na gravidade da situação e no tamanho da responsabilidade que carregava nos ombros quando ouviu a portinhola da cerca interna se abrir. Surpreendeu-se ao ver que era visitado por sua filha e o namorado.
— Tarde, seu Eli, tarde, Gabriel — adiantou Raul, com um sorriso indolente, forçando o sotaque interiorano na presença do velho.
— Boa tarde, Raul, Fernanda. Entra, come um lanche, conta como foi lá na casa grande — o velho apontava o lugar.
O casal aparecia raramente, mas, sempre que o fazia, era no horário de alguma refeição, e de mãos vazias. Fernanda enfiou a mão na embalagem de pão com uma expressão de decepção, acostumada recentemente com um cardápio superior, enquanto Raul apoiava os pés na cadeira anteriormente ocupada por Melinda. Gabriel franziu o cenho.
— Como vocês tão, tudo certo lá embaixo? — o velho inquiriu.
— Se não fosse essa estrada tava melhor, né. E esses pernilongos, também, aqui até que não tem tanto…
— Deve ser a água — diz Gabriel. — Vocês moram mais perto do ribeiro.
— Ah, deve ser mesmo. Que tormento. Não sei como vocês gostam de morar no mato.
— E o meu pai até tinha opção — retrucou Fernanda.
— O lugar é muito bom, e tem muita coisa que dá pra fazer — Gabriel enchia sua segunda xícara com café. — Se você quiser eu te passo umas coisas do leite pra você aprender, Raul, agora que você está de volta.
— Você tá maluco? Eu, trabalhando na roça? Morar é uma coisa; isso já é demais — disse Raul antes de morder com gosto o lanche que Fernanda lhe entregara.
— Bom, se quiser, é só me chamar. Estou na mangueira — despediu-se Gabriel.
Tão logo o rapaz saiu, a conversa mudava para assuntos decididamente urbanos. A filha comentava sobre uma roupa que comprara errado pela internet, enquanto Raul continuava sua lenga-lenga sobre a vida entediante no sítio em contraste com a agitação alegre do centro de Ribeiro Alvo.
— E aquele trabalho no galpão do seu Américo, não deu certo?
— Eu não fui com a cara daquele caboclo, não. Mas até tentei, sabe? Só que um dia ele veio falando que eu tava deixando as caixas desarrumadas — contava Raul, indignado. — O cara vem me cobrar organização com aquele salário ridículo depois de tanto peso pra carregar? Pelo amor. Não dá, não.
— O mundo tá muito injusto, o povo só quer saber de explorar os pobres — completava a filha, validando o namorado, enquanto reclamava mentalmente do auxílio ridículo que a prefeitura lhe pagava por conta da deficiência e da depressão.
— Não é que eu queira me intrometer, mas vocês podiam tentar outras coisas, vocês vão precisar ganhar dinheiro uma hora, agora que estão de volta.
Sem querer, o velho tocara no assunto proibido.
— Você, falando isso, papai?!
Por que é que ele tinha que falar?
— Você acha que eu gosto de viver desse jeito? E o Raul, que tem um intelecto muito melhor do que todos vocês juntos, acha que ele merece trabalhar carregando caixa? — Fernanda apontava simbolicamente para os antigos ocupantes da mesa.
— Mas então ele pode estudar…
— Ah, estudar. Estudar o quê, papai? Que raio de faculdade vai ter aqui perto, e quem vai pagar? Você? E nem vem me falar de faculdade online, que não presta. É só pra arrancar dinheiro de pobre que nem a gente.
Raul baixou o semblante, tal qual o gênio incompreendido que Fernanda pintava.
— Fernanda, eu só falo porque eu quero o bem de vocês.
— Quer mesmo? Deixa a gente viver a nossa vida em paz. Não se esqueça porque é que eu estou nessa situação — dizia, apontando com a cabeça para o pé protético, seu fardo e seu trunfo para todas as situações.
Era inútil tentar fazer aqueles dois gerarem renda por conta própria. Eli podia ver os anos se passando e, quando ele próprio já tivesse passado, via o jovem Raul acabando em meses com o patrimônio que ele e Ingrid levaram décadas para construir. Aquilo não era nada justo.
Por outro lado, o que Eli fizera com Fernanda também não era nem um pouco justo. Sim, ele era o culpado pela deficiência da filha, e pela ausência de Ingrid, e por todos os problemas que se seguiram disso. Ele que se virasse para tentar consertar - nem que leve uma vida inteira.
Mas e se uma vida inteira não for o suficiente?
A seguir: A vaca Mocinha começa a dar sinais de parto, mas algo parece errado.