Capítulo 1 - Como a flor do campo
Dias atuais. Eli, um sexagenário, começa seu dia no sítio normalmente, até que algo anormal chama a atenção dos animais.
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Algumas histórias têm cheiro de terra molhada, com o ritmo do sol subindo e do gado mugindo ao longe.
Este capítulo nasceu assim: devagar, com cheiro de café passado e um silêncio que fala mais do que qualquer pregação.
Não é um começo de explosões. É um começo de peso. Daqueles que a vida coloca sobre os ombros de quem segue andando.
Só lê com calma. Respira fundo. Deixa essa varanda te abraçar.
Anteriormente:
Eli perdeu sua esposa, Ingrid, após uma picada de cascavel. O soro salvou a filha, mas não a impediu de ter um dos pés amputados.
I
No fresco da varanda, ao abrigo da roça, sob o manto de sereno, ao som do sabiá, mergulhado em cerração, Eli amanhecia em ciência e em encanto. O café escaldava a xicarazinha de alumínio esmaltado e subia em vapor espesso sob as narinas sexagenárias do pequeno produtor de leite.
Há muito tempo, pensava, haveria uma segunda companhia, um segundo par de mãos a folhear com ele a velha bíblia, disputando a passagem, aninhando a cadeira do lado da dele à mesa, à grande mesa de madeira de lei que fizeram juntos para o Ano Novo de 82.
Mas agora havia somente Eli. A mesa para doze exibia sua imponência inútil, fazendo a ausência de Ingrid aumentar. E a leitura? Apenas palavras bonitas, incompreensivelmente bonitas, lidas religiosamente ao nascer do sol no pequeno sítio. Fernanda não acompanhava, não era dessas. Nunca foi, aliás. Desde menina tinha opinião forte e não admitia que a fizessem esperar ou sequer obedecer ordens que não compreendia, de forma que um pai sozinho não poderia fazer muito. O pastor dizia que era só fase, que ia passar, que a mocinha ia se acomodando aos poucos à congregação, “deixe as meninas cuidarem dela”. Fernanda odiava tudo isso.
Eli sempre soube que isso era porque a menina não acordava de manhã. “Não via os pintinhos saindo com a mãe ciscar grão, perdia o espetáculo da terra tirando o véu de neblina pra saudar o Criador, a Malhada e a Mocinha vindo que nem trabalhador de cidade, parecendo hora marcada.” E Eli não sabia que assim seu espírito orava, orava uma oração sem palavras, orava ao vestir suas botas de trabalho, orava ao acariciar o dorso da gentil ruminante, contemplava a presença de Deus. Seus postulados de teologia eram a regularidade do sol e dos astros celestes; seus sacrifícios de louvor se faziam ouvir com os baques surdos da enxada na terra fofa da estufa de alface. A sua fé era exercitada de sol a sol na esperança de que a chuva viesse no tempo certo e na quantidade exata.
Era como se, manhã após manhã, pensava Eli, Deus chamasse o seu servo com uma voz grave, de ordem, mas ao mesmo tempo permissiva, como um rei que por mais um dia tolerasse o serviço medíocre do seu peão mais dedicado e menos apto para a obra. Ele poderia desejar acabar logo de uma vez com o próprio sofrimento, mas não se via em outro lugar. O rei chamava: você vem?
O servo dizia: eu vou.
O sol já estava alto quando Eli se deu conta de que apenas algumas galinhas tinham aparecido para comer. Depois de ordenhar o par de vacas jerseys no barracão simplório, lavar o balde e colocar o latão de 50 litros de leite no uno 2007, uma busca rápida revelou um aglomerado de galinhas perto da cerca, logo abaixo da paineira.
II
Eli não deveria ir para aqueles lados até voltar da cidade com o latão vazio e o leite entregue, quando cuidaria dos bezerros, crias da Mocinha e da Malhada, que ainda não tinham adquirido o peso suficiente para a engorda na fazenda vizinha, de gado de corte. O leite saía morno das mães e precisava o quanto antes ser resfriado, e todo tempo era precioso.
Entretanto, o homem se aproximou e viu ali o mais velho, trigueiro, com pernas e cabeça enrodilhadas na cerca de arame farpado que limitava o seu espaço. O bicho não gritava, o que era mal sinal, pois poderia ter sido gravemente ferido, ou ainda estar preso por muito tempo, quem sabe desde o começo da noite passada.
Sem pestanejar, com a chave do veículo em mãos, buscou no porta-malas o alicate e correu morro abaixo para salvar o pobre animal.
O bezerro apesar de novo era forte, e ainda lutava quando o homem chegou. Aproximar-se era tarefa árdua: se tentasse recuar, o pequeno estrangulava-se ainda mais num laço duplo que fizera na cerca; se tentasse avançar, as patas traseiras, que seguravam o dorso de lado, sangravam ainda mais - o que causava agitação ainda pior.
O melhor a fazer, portanto, seria cortar o arame perto dos palanques, de um lado somente, para o animal não sair correndo e arrastando seu carrasco com ele. Eli cortou o fio do meio, o mais tensionado, que de imediato chicoteou o lombo do homem, já em posição de defesa.
Essa era a parte fácil.
Agora, com um fio solto e dois presos, a cerca tosca começava a balançar. O bicho, vendo que sua luta surtia mais efeito, motivou-se a escoicear, recuar e avançar ainda mais e ao mesmo tempo. Eli não tinha escolha, não podia cortar mais nenhum fio; era preciso agir rápido.
Com gritos de “ô, ô”, e balançando os braços em volta do corpo, o homem se juntou à luta corpo a corpo com o bicho de pelo. De alicate a postos, abraçou o pescoço do ruminante e pôs-se a libertar o fio do meio que balançava perigosamente. Era impossível ir contra as investidas do animal, de forma que o humano se juntou à dança com um parceiro com a metade da sua altura, e mais que o dobro do peso. A cada recuo, o velho mergulhava no emaranhamento do qual tentava desvencilhar a ambos. A cada avanço, habilmente o humano punha as pernas para trás e puxava o animal alguns centímetros para frente, ganhando um terreno precioso que seria perdido em segundos, tudo isso enquanto puxava com a mão livre, sem descolar o braço, o fio solto.
O sol já alto esquentava a fronte e a cabeça nua do velho, manchadas de minúsculas pintas castanhas que também se espalhavam pelos cotovelos, antebraços e a parte superior do tórax caucasiano. A pele do pescoço se deixava pintar com o sangue do animal enquanto o suor pintava a velha camisa social axadrezada de azul. As botas de cidade, recém vestidas, já estavam inteiras dentro da mistura de lama e esterco que cobria aquela região do piquete.
Os outros produtores já teriam sacrificado o bezerro ali mesmo, ou muito antes daquilo; as crias de gado leiteiro davam um gasto e um trabalho que dificilmente valiam a venda. Mas Eli era assim: afastava-se de qualquer coisa que se parecesse com um mal que não fosse estritamente necessário, especialmente depois de 89. Desde então nem porco havia mais ali, para não ter que abater o animal. As galinhas caipiras, criava somente pelos ovos, e não as encarceirava quando se negavam a produzir, em jejum absoluto, como faziam os demais. Os humanos também usufruíam da mesma condescendência, principalmente a filha.
A parte dianteira do bezerro cruzado finalmente se soltara, não sem um último puxão em Eli para dentro do piquete. “Agora é que eu quero ver”, pensou o velho, ao encarar a pata traseira esquerda firmemente presa entre os dois fios farpados que se entrecruzaram.
A pata direita, embora do lado de dentro do piquete e oposto ao velho, escoiceava com mais força agora que podia confiar no apoio das patas dianteiras. “Vou cortar de longe, mais longe possível”, dizia para si, esticando o braço direito com o alicate enquanto a mão esquerda, já em carne viva, protegia o corpo de possíveis ataques. Mas não obteve sucesso.
O mugido de dor do filhote começava a agitar a mãe à distância. “Ainda bem que a Malhada tá presa, senão ia ser um Deus nos acuda”. Arriscando-se a chegar ainda mais perto, o humano viu que um dos fios farpados enfiara-se bem na junção do quadril, coisa que não era possível ver ainda quando estava tão preocupado com o pescoço do animal. O sangramento que vinha dali era preocupante. “Não vou desistir de você, pequeno. Não vou dar esse gostinho para os vizinhos.”
Numa última e desesperada tentativa de libertar o bicho, Eli livrou-se dos escrúpulos restantes de segurança que ainda preservava e aproximou-se de costas para a barriga do bezerro, com a intenção de agarrar a pata presa por trás e cortar os fios.
Acontece que o animal, cego pela agonia, viu a oportunidade de apoiar a pata presa na grande superfície das costas do humano, de modo que, com incrível rapidez, conseguiu acertar em cheio um coice com as duas patas de uma vez.
Eli caiu com o rosto no chão, virando-se logo em seguida para contemplar seu oponente. Ali deitado na mistura de lama e esterco, tapou o sol com as mãos e constatou a derrota: o bicho sangrava agora copiosamente pelo corte na junção do quadril, provavelmente uma artéria havia sido atingida e contra isso Eli nada mais podia fazer. O leite no carro, por certo, já havia perdido o precioso tempo de que precisava para chegar ao resfriamento, o que somava mais uma derrota. “Duas de uma vez, meu Senhor, e ainda nem é meio-dia. O facão deve de estar ali no barracão, do lado do fardo de ureia, sim, me dá pelo menos essa graça de conseguir acabar com o sofrimento do bicho, meu Pai”.
Com custo se levantou, sem forçar a postura ereta, sem pensar nas marcas dos cascos nas costas, primeiro o bicho.
A execução foi certeira e breve. E quando por fim se permitiu sentar na mureta da varanda para respirar, o velho sentiu um estalo. E não conseguiu se levantar.
A seguir: Eli deve decidir o rumo da propriedade com a nova condição de saúde. Problemas financeiros batem à porta.
A sua opinião é muito importante pra mim. Eli fez certo ao lidar com o animal daquela forma? O que isso nos diz sobre a personalidade dele? O que você faria no lugar de Eli? Me ajude a trilhar esse caminho com a sua participação.
Eu tava torcendo pra ele salvar o bichinho, ô que tristeza :(
Achei tão vida real... Quando a gente cria a expectativa por algo e somos surpreendidos por outra coisa. Adorando tua escrita! Parabéns!
Eu já me sinto imersa na história de Eli. O modo poético como fala de fé e a resiliência dele impressionam. Me pergunto se o nome dele e a última cena foram inspiradas num outro certo Eli da Bíblia, rs. Estou gostando muito da sua escrita!